Um texto de Bruno Vieira Amaral
O realismo mágico não é uma questão de lugar nem de acontecimentos. É uma questão de tempo. Todos os romances são feitos de tempo. Tempo do homem nas suas viagens e ilusões, em Cervantes, tempo do homem na História, em Tolstoi, tempo do homem na memória, em Proust, tempo do homem na consciência, em Woolf, tempo do homem nos labirintos exteriores, em Kafka. Em Cem Anos de Solidão, o tempo é todos esses tempos, todos os homens, todo o mundo. É o tempo dos cem anos, logo no título, e é o tempo incerto inscrito no início: “Muitos anos depois”. Mas mesmo os cem anos são incertos. Não são um século cronológico, são os mil anos de felicidade, são os sete dias da criação, o dia do juízo final. É o tempo bíblico: Alfa e Ómega, Génesis e Apocalipse. É o tempo dos começos: do homem que arrasta um povo pelas montanhas a fim de criar um novo mundo porque, antes de Macondo, ainda tínhamos começos. Na origem dessa viagem está o sangue, a culpa ancestral de Caim. O novo mundo é o mundo da redenção, expulsão do paraíso, fuga do Egipto. Um novo começo exige novas palavras. O homem é de novo Adão a baptizar as coisas. O homem é de novo uma criança na infância da humanidade, maravilhada pelo espectáculo do gelo. O tempo dessa inocência reconquistada dura pouco. Vem então o tempo da história, da política, do governador e dos seus soldados, da companhia bananeira, o tempo das guerras, dos pelotões de fuzilamento, dos massacres. O tempo do homem escravo da história, das leis que vêm de cima e que o homem só pode combater com o preço da vida, do esquecimento e da resignação: do homem que acaba os dias amarrado a uma árvore, do homem que esquece os corpos empilhados num vagão, do homem que se encerra num quarto a fazer peixinhos de ouro, do homem que, no mesmo quarto, se entrega a decifrar o seu destino, do homem que se enforca por ter esperado de mais, da mulher que desiste do mundo e ascende aos céus. O mundo começa no rio do sangue e acaba no labirinto das palavras. O realismo mágico, designação já corrompida, é o tempo circular, dos nomes repetidos, das gerações repetidas, do tempo que parece emanar de um único instante e regressar continuamente a esse mesmo instante, o tempo divino em que um segundo são mil anos. É o tempo que avança em espirais de infortúnios, desgraças e desesperos. Os cem anos de solidão são o tempo que o mundo dura se o mundo, se a vida inteira, pudesse caber num livro.
Bruno Vieira Amaral é escritor, crítico literário e tradutor. Em 2013, publicou Guia Para 50 Personagens da Ficção Portuguesa” e “As Primeiras Coisas”, a sua estreia no romance. É autor do blog Circo da Lama e editor-adjunto da revista Ler. Trabalha como assessor de comunicação no Grupo Bertrand Círculo.
1 Commentário
Mas pode o realismo mágico circunscrever-se ao “tempo circular”? Outra questão: para quando “as segundas coisas”:)?