Quem anda nesta vida de comprar e de ler livros, já se habitou a que, de tempos a tempos, surja nas livrarias um manual de história que promete, quase como que num daqueles livros amarelos que muito bom cábula lia em substituição de tarolos como “Os Maias” ou “Os Lusíadas”, condensar séculos e séculos de acontecimentos mais ou menos interessantes.
Em “Maré Alta” (Companhia das Letras, 2019), nome do seu terceiro romance, Pedro Vieira consegue espremer um século português em menos de quinhentas páginas, retratando um país em transformação onde a maré tanto sobe como desce; um lugar onde a palavra de ordem e que atravessa o tempo parece ser “sobrevivência”, num olhar apaixonado, por vezes desiludido outras esperançoso, do país que iremos sempre amar, independentemente dos salários, da qualidade televisiva ou dos políticos que temos.
“Tenho publicado as coisas sem querer, mas percebi que estou a publicar de forma bissexta. Isto de escrever livros não é a minha profissão“. As palavras são de Pedro Vieira na apresentação de “Maré Alta”, que teve ontem (16 de Maio) lugar na Biblioteca Municipal da Lourinhã, integrada na programação do Livros a Oeste, festival literário organizado pelo Município da Lourinhã que decorre até 18 de Maio (ver programação).
Actualmente guionista e pivô do programa “O Último Apaga a Luz” da RTP3, Pedro Vieira licenciou-se em Publicidade e Marketing pela Escola Superior de Comunicação Social, trabalhou no Canal Q das Produções Fictícias como criativo – onde apresentou o programa diário Inferno – e foi um dos responsáveis pelo programa “Ah, a Literatura!”. Pelo caminho ainda foi consultor de comunicação na Booktailors, designer no Centro Cultural Olga Cadaval e livreiro em livrarias dos grupos Almedina e Bulhosa, ainda conseguindo arranjar tempo para desenhar umas ilustrações para a revista LER. Ou para desempenhar o seu papel de visionário como Irmão Lúcia, que a espaços ainda vai surgindo no seu twitter.
“Maré Alta” é um livro onde o autor nos faz um relato de um país constantemente no trapézio – ou em alto mar -, conduzindo-nos aos seus lugares mais profundos, onde a religião pesa tanto como o aço e as crendices e as rezas são a banda sonora mais escutada; ao desejo de fuga para as grandes cidades; à emigração como sonho, mostrando-nos aqueles que desenharam o primeiro trilho e todos aqueles que o seguiram já mais confiantes; o terror da ditadura, que Portugal conheceu e que teve como rosto maior o do Dr. de Coimbra; a chegada da revolução e todo o encanto e desencanto que ela trouxe.
Segundo Pedro Vieira, que diz ter pensado neste romance “com mais cuidado do que nas vezes anteriores, longe do olhar contemporâneo”, o grande motivo para a sua escrita surgiu de um estranho e imposto anonimato sobre uma figura familiar: “O gatilho para a escrita foi ter chegado aos 40 anos sem conhecer a identidade do meu avô materno. Uma espécie de tabu familiar, sobre a qual a minha mãe nunca falou. Era como se não existisse. Fez-me pensar num homem que teve uma vida aos repelões, que saltou de família em família até simplesmente desaparecer. Coloquei então um homem a viajar por um século português, escrevendo o meu retrato do Portugal do século XX”.
Curiosamente, já depois de ter escrito o livro e numa sessão de apresentação de “Maré Alta”, “a minha mãe, que me considera genial, grita da assistência depois de me ouvir dizer que nem sequer conhecia o nome do meu avô: Joaquim! Mas desde esse momento este assunto nunca mais voltou a ser falado”.
“O livro tem algumas coisas verdadeiras, apesar de isso não ser importante para o leitor. Enquanto autor há coisas que eu quero deixar escritas. Neste livro quis escrever uma saga que tem a ver comigo, connosco, com os meus – que sei que nunca vão por os olhos nisto”, disse com humor sobre um romance que recolhe os olhares de cada época deste último século português, mais concretamente na linha temporal situada entre 1917 a 1989, com um remate final dado já depois dos anos 2000.
Um dos muitos episódios retratados no livro, ainda que as datas nunca sejam apresentadas, é o ocorrido a 18 janeiro 1934: uma greve geral que teve o seu epicentro na Marinha Grande. Um golpe condenado ao fracasso, combinado de forma algo improvável entre anarquistas e comunistas. “Tal como na Guerra Civil espanhola, não resultou. Mas aquela ideia de ter gente que com muito romantismo trágico tentou a revolução serviu-me de empurrão”.
A tragédia é, aliás, uma característica marcante na construção das personagens de Pedro Vieira, que recusa o desejo de universalidade ou, posto de outra forma, de trazer para dentro dos seus livros personagens reais: “O meu olhar vai sempre ser o olhar dos comuns. Gosto de falar das pessoas do dia-a-dia. O que interessa são as minhas pessoas, e é sempre sobre esses que quero escrever“.
Título arrancado a uma canção de Sérgio Godinho, “Maré Alta” “relembra que a liberdade é transitória”, e que é preciso estar bem preparado para as mudanças de maré. Aprendam a nadar bebés, apetece dizer.
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Fotos gentilmente cedidas pelo Município da Lourinhã.
O Deus Me Livro está na Lourinhã a convite do Município da Lourinhã, organizador do festival literário Livros a Oeste – com o programador João Morales.
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