“O Tempo Avança por Sílabas” (Quetzal, 2019) é uma antologia de cem poemas escolhidos pelo autor, a partir dos dez livros que publicou entre 1989 e 2018, conjugando fragmentos do quotidiano com a História e a memória (também cultural) ao “ruído da circunstância”.
João Luís Barreto Guimarães nasceu no Porto, a 3 de junho de 1967. Poeta e tradutor, divide o seu tempo entre Leça da Palmeira e Venade e a sua obra está representada em antologias poéticas e revistas literárias de numerosos países, tendo “Mediterrâneo” sido publicado em espanhol.
O livro está organizado de forma repartida pelas obras do autor- cada “capítulo” são poemas selecionados de uma delas, onde nos inícios vêm realçados uns versos que pairam como introdução apelativa das divisões.
Não há regras: poemas que tocam em prosa, versos que deslizam sem fim para os que lhes seguem, rimas e poucas rimas, títulos e subtítulos ou inexistência dos mesmos (“não darei nome ao poema seria como quem/coloca legendas aos dias (…)”). Caminhamos num ritmo pachorrento, mas positivamente movediço, com onomatopeias, palavras em itálico a gritarem para serem compreendidas e recursos expressivos infindáveis.
Estamos num lugar, num espaço (numa rua, numa casa, num café, numa escola) e estamos num tempo: o agora e o presente do agora. No final temos uma circunstância, uma envolvência, um sentimento, que nos é transmitido de forma crua. O mundo é desconstruído porque vemos, sentimos ou ouvimos algo que provavelmente não faríamos em situação idêntica na nossa pele.
O sujeito poético tem tudo para ser um humano: um humano a ser humano, humano mundano. A rotina é o palco para imagens visuais simplistas deliciosas, onde os pormenores são os únicos actores (“A mais simples distracção tomará alma por lama”). O normal é o amplificador do sentimento: não se exige o enfeitar, nem o exagerar, nem o fantasiar, porque na vida o amor é um ficar com “o puxador da porta da cozinha na mão” sabendo que há alguém-companhia para o consertar. A voz poética fala como se vive, e há muita pimenta.
As ideias no conteúdo satisfazem, porque são tremendamente directas, mas é quem do evidente consegue tirar magia que percebe de subentendimentos. Por exemplo, temos que não se ganha afecto a um quarto de hotel “se é certo que amanhã outro dono estará emoldurado ao espelho” ou desfrutamos de um poema muito bonito que se chama “Dublin não me deu um poema” que não tem versos nenhuns.
Num filme de terror há o suspense do temor do susto. Nesta obra, há o suspense do aparecimento do sorriso. Sorriso sempre. Em todo o lado. Pinceladas de humor, num jogo de ironia e boa disposição inesperada (“Este fósforo corre risco de vida”), onde o muito melancólico esvoaça num jogo de ânimo (“(…) o dia é uma partida com a meia cinzenta rota no dedo grande do pé” ou “transporto comigo este dia como a sola do sapato transporta uma pastilha elástica”). O corriqueiro mostra-se corriqueiro, mas, surpreendentemente, conseguimos acreditar que o banal até é divertido e tanto o bonito como o triste são engraçados.
De referir que a capa que funciona enquanto envoltório se destrói facilmente. Poder-se-ia sonhar em que esta não existisse, mas se a retirarmos temos um livro preto, algo fúnebre, que queremos evitar, atendendo a que não tem qualquer paralelo com o conteúdo.
Esta obra é o dia-a-dia em poemas: a poesia está na vida, e nesta obra dispomos de palavras para “aprimorar a arte da sobrevivência”. “A poesia está nas coisas/(pão quente)/destapa-a”.
Aconselha-se a leitura de “O Tempo Avança por Sílabas” a quem gosta do simples dia, do puro estar e de sorrir a ler.
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