“Sou uma peça no mecanismo do mundo, a rodar dentro desta manhã.”
Sayaka Murata nasceu em Inzai, no Japão, em 1979. Em criança gostava de ler ficção científica e policiais e, aos dez anos, já sonhava tornar-se escritora. Actualmente é uma das mais mediáticas romancistas contemporâneas, tendo escrito para a Granta e sido nomeada Mulher do Ano pela Vogue japonesa em 2016. Um estatuto que não a impede de trabalhar em part-time numa loja de conveniência na cidade de Tóquio, lugar onde observa o quotidiano das pessoas que a visitam e que tem sido uma inspiração para a sua obra, como neste pequeno e inquietante romance de título “Uma Questão de Conveniência” (Dom Quixote, 2019).
Keiko, a protagonista e narradora, sempre foi uma estranha: para si, para os outros e para os pais, que se perguntavam de que forma poderia ela encaixar na engrenagem do mundo. No infantário, por exemplo, em vez de aceitar fazer um funeral a um lindo pássaro que tinha morrido, propôs antes levá-lo para casa e comê-lo, apanhando mais uns quantos para o repasto ser maior. Mais tarde, na primária, parou um combate entre dois miúdos batendo com uma pá na cabeça de um deles. Houve também o episódio em que baixou as saias e as cuecas a uma professora, que parecia não conseguir de um estado histérico e se calou de imediato.
“E foi assim, sempre com a ideia de que precisava de me curar de alguma coisa, que me fui tornando adulta”. Dessa forma, ao invés de ter seguido uma carreira académica decidiu trabalhar numa loja de conveniência, num lugar longe da pressão social do trabalho, do casamento e da paridade. Keiko tem agora 36 anos, 18 deles como funcionária exemplar da loja.
Um trabalho que aceitou de bom grado – fala a certa altura em renascimento -, certa de que “o padrão do mundo é rígido e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam por ser ajustados e corrigidos”, numa constante avaliação que se estende do berço à cova.
Será no trabalho que se irá envolver com um rapaz com propensões para a marginalidade, com o qual irá estabelecer um contrato relacional em nome das aparências, aceitando dele o parasitismo descarado e um total aproveitamento para passar ao mundo a fachada de uma vida normal.
Sayaka Murata recua ao período Jõmon para traçar um paralelo com a pré-história, onde quem não contribui para a aldeia é eliminado, estando os papéis estão pré-estabelecidos: os homens caçam, as mulheres parem. Uma sociedade primitiva, escondida sob uma carapaça da modernidade, onde como numa loja de conveniência as pessoas vão sendo substituídas por outras, mantendo uma perpetuação do sistema onde as mulheres são o seu sustentáculo silencioso e subjugado.
Cruzamento entre o Big Brother de Orwell e a Carrie de Stephen King – ainda que sem ecrãs vigilantes ou baldes de sangue por perto -, “Uma Questão de Conveniência” é um romance sobre a inadaptação na contemporaneidade, acerca de um mundo onde, para se subsistir perante a norma, há que deitar fora a essência, acabando por se aceitar a dormência dos sentidos e o ruído do mundo como se de uma sinfonia de Bethoven se tratasse. Irasshaimasê, querido leitor. Irasshaimasê. Pequeno e memorável romance, atravessado de uma ponta à outra pelo espírito de fabulação japonês.
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