E se qualquer semelhança com a realidade não for pura coincidência? E se cada mulher só tivesse direito a 100 palavras por dia? Christina Dalcher, norte-americana, doutorada em linguística teórica, autora de contos e pequenas narrativas publicadas em centenas de revistas literárias pelo mundo fora, traz-nos “VOX” (Topseller, 2019). Muito mais do que um romance, “VOX” representa uma poderosa reflexão sobre política e sociedade.
Jean McClellan tornou-se uma mulher de poucas palavras depois ter um dispositivo prateado à volta do pulso, um contador de palavras que, à meia-noite, volta ao zero, disponibilizando as cem palavras que qualquer mulher pura tem para um dia. Apenas as mulheres os usam: os passaportes foram-lhes retirados, os livros trancados, foram impedidas de trabalhar e obrigadas a dedicarem-se exclusivamente à vida doméstica e familiar. O trabalho fora de casa fica reservado para as excluídas, como castigo.
Em família, as relações foram reinventadas. Enquanto o marido e os três rapazes falam com a língua, Jean e a única filha comunicam com os dedos, escrevendo palavras invisíveis. As câmaras passaram a estar em todo o lado.
Jean faz tudo para que o contador não passe para além dos três dígitos, especialmente o da filha de 6 anos, a quem treinou de forma pavloviana para evitar que esta experimente a reacção do dispositivo perante uma violação da regra.
Os Estados Unidos da América são dominados por um governo misógino, onde a religião é quem mais ordena, governo apoiado por homens conservadores, maioritariamente brancos, maioritariamente heterossexuais, mas que não odeiam as mulheres – pelo contrário, desejam protegê-las e preservá-las da exposição pública, transformando-as em ícones de lares perfeitos. Consideram-se sensíveis e protectores, qual sexismo benevolente que atribui a diferença entre sexos à diferença de capacidades, à inferioridade e à necessidade de orientação e protecção das mulheres. Qual sexismo hostil que impele à contenção e controlo das mulheres, pela sua incapacidade de perceber os seus limites e o lugar no mundo.
Nesta distopia, as mulheres tornaram-se “males necessários, objectos para serem fodidos e não ouvidos”. Nas escolas ensina-se que “a cabeça de cada homem é Cristo, a cabeça da mulher é o homem e a cabeça de Cristo é Deus”. Ensina-se ainda às jovens a sobriedade, a amar os maridos, os filhos, a cultivar a discrição e a castidade, a zelar pelo lar, a serem boas e obedientes aos maridos, num apelo evocativo de gerações mais antigas de mulheres, fazendo crer que se trata de uma reposição de normalidade.
A legitimação por parte de quem governa e dos que os elegeram e apoiam vem da convicção de que, no século XXI, “já não sabemos quem são os homens e quem são as mulheres. Os nossos filhos crescem confusos. A cultura familiar foi destruída. Temos aumentos de trânsito, poluição, dos níveis de autismo, do consumo de drogas, do número de pais solteiros, da obesidade, da divida de consumo, da população prisional feminina, dos tiroteios escolares, da disfunção eréctil”.
Instalou-se o primado da reeducação. Os filhos de casais do mesmo sexo são enviados para viver com outros familiares, até que os pais biológicos voltem curados da homossexualidade, nem que para isso tenham que viver de forma carcerária em “campos de conversão”, obrigados à experimentação e assunção da heterossexualidade.
Mas Jean M. era uma cientista, uma das melhores, subitamente necessária. Será possível fazer com que o tempo ande para trás? Será possível evitar que as crianças se transformem em monstros, aprendendo que matar é aceitável e que a opressão é justa?
É curioso como a leitura de “VOX” suscita um desconfortável sentir premonitório, como se não existissem dúvidas de que o narrado é possível, sendo o livro uma poderosa forma de alerta. Um alerta para as consequências da passividade, do amorfismo, para as eleições em que não se vota e as manifestações em que não se participa. O risco de permanecer como mero espectador, dando fundamento à afirmação há muito conhecida: “o mal triunfa quando os homens bons não fazem nada”.
Thriller? Ficção científica? Ensaio? Em “VOX” estamos nos Estados Unidos da América, em pleno século XXI, com uma presidência que sucede ao presidente negro, sedenta de afogar um continente inteiro (a Europa) num caos não-verbal, fazendo-o vergar de joelhos.
Em género de agradecimento, Christina Dalcher termina com um desejo: “A si, querido leitor, que será o derradeiro crítico desta história. Espero que goste. Acima de tudo, espero que o deixe um pouco irritado. Espero que o faça pensar”.
1 Commentário
Impossível não fazer a associação deste livro ao “Ecologia” da Joana Bértholo, onde as palavras são controladas, contabilizadas e taxadas. Fiquei curiosa.