E se, após a morte, fosse dada a possibilidade de voltar a viver e realizar a vontade de amar alguém? O que será, então, expectável? Aproveitar e renovar a existência, ou retomar a vida deixada antes da morte e fazer alguns ajustes de contas ou fecho de portas?
Em “Os Dados Estão Lançados” (Minotauro, 2018), romance escrito em plena Segunda Guerra Mundial, Jean-Paul Sartre serve-se de Pierre Dumaine, um jovem humilde e conspirador que dedicara a vida à revolta, e Ève Charlier, de classe alta, casada e refém das convenções, para activar o dilema do valor da existência e da realização suprema de algo.
Ambos assassinados, Pierre e Ève encontram-se numa dimensão sem limites. Circulam entre mortos de outros tempos, vestidos ao gosto das respectivas épocas, sem responsabilidades ou preocupações, com distracções à escolha e uma liberdade absoluta.
“– Perfeito – conclui a velha senhora. – Agora está oficialmente morta.
Ève hesita e depois interroga:
– Mas … aonde é que hei-de ir?
– Aonde quiser. Os mortos são livres.”
Ambos observam a vida que os vivos mantêm sem, contudo, poderem interferir: “Falha-se sempre a vida, no momento em que se morre.” Entre Pierre e Ève, surge uma afeição forte, talvez mesmo amor: “- Meu Deus, seria tão agradável poder tocar os seus ombros. Gostaria tanto de respirar o seu hálito quando me sorri. Mas até isso me é negado. Encontrei-a demasiado tarde …”
Talvez não seja demasiado tarde, afinal. Ao abrigo do artigo 140, segundo o qual “se, em consequência de um erro unicamente imputável à direcção, um homem e uma mulher, destinados um ao outro, não se tiverem encontrado em vida, poderão pedir e obter autorização para voltar à terra sob certas condições para aí poderem amar-se e viver a vida em comum de que foram injustamente privados”. A condição consiste em, voltando à vida com toda a memória intacta, conseguirem, em vinte e quatro horas, amar-se e dedicar-se totalmente um ao outro.
Como se amar garantisse o direito à vida, Pierre Dumaine e Ève Charlier voltam a viver, sendo colocados exactamente no momento em que haviam anteriormente morrido. Tudo parece perfeito, mas a ligação ao passado e às situações deixadas permanecem, e a disputa entre o destino e o livre arbítrio mostra-se árdua.
Jean-Paul Sartre (1905-1980) dispensa grandes apresentações como filósofo e como romancista. Escreveu filosofia tanto para filósofos como para leigos, articulando ensaios e livros complexos com peças de teatro e romances escorreitos e fluidos. A sua obra, filosófica ou literária, expressa a mesma preocupação e ideia básica de exploração do significado da existência humana e do Ser.
Com veios metafísicos e até místicos, “Os Dados Estão Lançados”, adaptado ao cinema em 1947, ano da sua primeira edição, vai para além do literal, servindo-se de uma linguagem eminentemente figurativa e de um conteúdo que nos impele à reflexão do que será o ideal de felicidade e de realização individual. Um livro breve com uma mensagem que permanece.
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