Estamos, aqui, perante uma obra que se perfila como o expoente máximo da narrativa latino-americana contemporânea. Absolutamente surpreendente, como a parábola moral que é da sociedade humana, “Casa de Campo” (Cavalo de Ferro, 2019), de José Donoso, foi um livro escrito em Espanha, em plena ditadura militar chilena, que se desenha aqui e ali como um pano de fundo parabólico, quase em alusões gerais, com nuvens escuras pairando sobre as páginas e produzindo um enorme impacto no leitor.
Um impacto que advém da permanente “condução de leitura“ que lhe faz o Autor – sempre presente e a impor-se-lhe, instando-o à compreensão da trama que não é fácil -, mas também da perplexidade que suscita em virtude do tipo de transgressões narradas, protagonizadas por crianças e adolescentes da família Ventura que assumem o controlo da casa de campo Marulanda na ausência dos adultos.
A acção retrata os acontecimentos passados num único dia (que, de tão diferente, tudo mudou) na mansão senhorial da família Ventura. A ausência inesperada dos adultos origina a que as crianças assumam, com os servos e indígenas que trabalham nas minas de ouro da propriedade, o domínio da mansão, que se irá tornar um domínio erótico e febril pelo despertar dos prazeres físicos e pela consciência festiva da quebra das regras mais sagradas dos adultos. Este festim de pulsões reprimidas vai provocar a ruptura radical com a ordem familiar e social, trazendo um novo mundo anárquico, exuberante, mágico e muito doloroso.
Retratando uma época do século XIX, o romance faz um enquadramento sociológico notável, assumindo o Autor, certamente com uma certa dose de delírio, uma despudorada verdade em assuntos tabu como o canibalismo, a antropofagia, a violência, o incesto e o abuso sexual.
A trama encerra histórias dentro de histórias, recuperando o passado para narrar o presente, a partir de um olhar quase programático do Autor sobre a própria construção do romance, que tende a ser uma crítica social feroz e uma denúncia sem piedade das relações entre classes, que se desenvolvem numa teia muito complexa de inconfessáveis interesses.
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