É humorista, guionista e apresentador de televisão e, provavelmente, já o terão visto a reinar no The Daily Show, um dos mais emblemáticos programas de humor americanos que passam no pequeno ecrã. A verdade é que a vida de Trevor Noah nem sempre foi fácil, sobretudo tendo em conta de que cresceu na África do Sul durante um dos seus períodos mais tenebrosos, registado nos manuais de história e na memória humana colectiva como apartheid.
Estamos habituados a ler sobre assuntos sérios de forma séria, mas a forma como Trevor Noah desmonta o absurdo do racismo em “Sou um Crime” (Tinta da China, 2018), sempre com uma piada na ponta da caneta enquanto nos conta sobre a sua vida no país de origem, é absolutamente extraordinária. Veja-se, logo a abrir, a forma como fala da genialidade de um sistema opressor:
“A genialidade do apartheid foi convencer uma população que constituía a esmagadora maioria do país a virar-se contra si mesma. “Apartódio” seria um termo mais adequado. Apartam-se as pessoas em grupos e instiga-se o ódio de uns contra os outros, com o objectivo de controlar a todos.”
Um ódio sentido maioritariamente entre xossas e zulus, distinguidos por Noah entre pensadores e combatentes, com visões muito distintas sobre a convivência com o homem branco: “Os zulus foram para a guerra com o homem branco. Os xossas jogaram xadrez com o homem branco”.
Para lá de um enquadramento histórico dado com muito aprumo, Trevor – que nasceu da relação entre uma negra e um branco durante o Apartheid, algo punível com cinco anos de prisão – fala-nos das suas desventuras amorosas em tenra idade, da relação algo alucinada com a mãe, do grupo de amigos onde se incluía um dançarino chamado Hitler ou de como de aspirante a pirata e dealer musical se tornou, inesperadamente, num DJ que montava a festa onde quer que houvesse espaço.
Noah descreve de forma exemplar o peso que a religião teve na sua dinâmica familiar, mostrando as diferentes igrejas que frequentava com a mãe, aproveitando também a fé para nos mostrar como o racismo e a segregação estão presente nas mais pequenas coisas.
“Durante muito tempo não compreendi por que razão tantos negros tinham trocado a sua fé indígena pelo cristianismo, mas quanto mais vezes ia à igreja e mais tempo passava sentado naqueles bancos, mais aprendia sobre o funcionamento do cristianismo: se formos nativos americanos e rezarmos aos lobos, somos uns selvagens. Se formos africanos e rezarmos aos nossos antepassados, somos uns primitivos. Mas quando os brancos rezam a um tipo que transforma água em vinho, bem, isso é apenas senso comum.”
Mistura de autobiografia, sitdown comedy e uma carta de amor aberta à sua mãe e heroína, “Sou Um Crime” é um relato de sobrevivência e uma lição de história, que junta ao lado sentimental e perturbador um sentido de humor refinado, mostrando-nos todo o absurdo da condição humana. Um dos grandes livros editados em Portugal no ano de 2018.
Sem Comentários