Maria Fernanda Botelho de Faria e Castro (1926-2007) é uma escritora portuguesa do século XX, com uma assinalável obra poética e ficcional, pelo que a reedição do seu livro “A Gata e a Fábula” (Abysmo, 2018) se saúda com entusiasmo. A originalidade da sua escrita na construção das suas narrativas, com um apurado sentido do dramático do perfil humano, mostra uma peculiar atenção aos detalhes e às subtilezas da vida em sociedade.
O percurso literário da autora é marcado pela sua imensa criatividade, coragem cívica e uma discreta melancolia, presente na tragicidade contida (ou não) das suas personagens, que inclui títulos como “Terra sem Música” (1969), “Festa em Casa das Flores” (1990), “Dramaticamente Vestida de Negro” (1994) e “Gritos da Minha Dança”, o derradeiro livro em 2003.
Com refere Marcelo G. Oliveira no prefácio à presente edição, A Gata e a Fábula “tem no seu cerne a própria revisitação das origens, do mundo da infância das suas personagens, representantes, aquando da sua publicação” (1960), “de uma geração que então se afirmava e questionava no suspenso mundo do pós-guerra português (…). A gata é Paula Fernanda, personagem subversiva e pouco atreita a normas que, na adolescência, se oferece a Duarte Henrique, seu amigo de infância, apenas para ser por ele recusada, vivendo depois uma existência suspensa à espera do ´canto da cotovia´ que a libertaria, ou seja, da sua recusa à proposta de casamento que ele acaba por lhe fazer”.
Este é o tema central de um romance construído através das adolescentes personagens do período Pós Guerra, onde a perspectiva feminina está sempre presente (atente-se, entre outras, na Chiquinha, na Maria da Luz, na Maria Alexandra, na Pardala, na Henriqueta, na Rosa ou na Micas) na sua “condição feminina”, constantemente perscrutada pelo homem e pela sociedade numa assunção de género assumidamente desigual. A forma inovadora como a autora constrói o perfil das personagens (muito à custa de abundantes diálogos com importantes elucubrações sobre temas que divagam por caminhos muito diversos), denota que mantém uma incessante busca pela reposição da justiça, através da escrita, sobre a condição humana.
As personagens dialogam e propalam os seus (pre)conceitos de vida, e a autora, através do discurso destas, propõe-se “deambular” por uma profusão de assuntos (dando mesmo a ideia de uma propositada dispersão ao tema central) que evocam a religião, a politica, a honra, a aristocracia, a ética, a poesia, o humanismo, os verdadeiros protagonistas da guerra, o classismo social, as relações familiares e a diferença de género.
Este deambular criativo de Fernanda Botelho deslumbra o seu leitor pelo seu grande talento para pensar e escrever um livro que, mais uma vez, se furta completamente a rótulos e a apreciações convencionais no rico panorama literário português, reservando-lhe um lugar bastante original.
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