Assumida devota da figura e personalidade de Rafael Bordalo Pinheiro, Isabel Castanheira é autora de um dos mais bonitos e fascinantes livros que chegaram às livrarias nacionais nos últimos anos. Fala-se de “As Caldas de Bordalo” – ler crítica aqui -, um livro que propõe ao leitor dar 89 passos que reconstituem e, de certa forma, materializam, o espírito dos lugares por onde o artista português passou e gravou a sua marca na cidade das Caldas da Rainha. O Deus Me Livro esteve à conversa com Isabel Castanheira sobre aquele que é, confirmou-nos, o livro da sua vida.
De onde surgiu este seu fascínio pela figura de Rafael Bordalo Pinheiro?
Foi um acaso motivado por exigência de ordem profissional. Em 1977, abri uma livraria nas Caldas da Rainha, após dois anos de intensa procura de emprego, pois em 1974 tinha vindo de Angola, onde até então tinha feito a minha vida. Porque os meus conhecimentos sobre livros se resumiam ao facto de gostar muito de ler, obriguei-me a tomar conhecimento sobre o que havia publicado sobre o livro, a sua história, a sua comercialização, etc., mas os dados disponíveis eram, à data, quase inexistentes. E quando andava nesta tarefa quase inglória dei com um ou dois livros sobre banda desenhada, onde num deles encontrei as primeiras referências sobre Rafael Bordalo Pinheiro como um dos percursores da banda desenhada em Portugal. O que foi óptimo, pois aqui já me sentia em casa, porque vivia na terra onde Rafael Bordalo Pinheiro, em 1884, tinha montado a sua fábrica de cerâmica. E a minha curiosidade estimulada por tal coincidência levou-me a procurar cada vez mais elementos e a começar a adquirir não só as obras da autoria de Rafael, mas também as daqueles autores seus contemporâneos que sobre ele e a sua obra se debruçaram. Estava assim apanhada uma forte doença exteriorizada em fortes sintomas bordalianos, sem melhorias possíveis e que se foi agravando ao longo dos tempos, tornando-se numa doença crónica com graves repercussões no orçamento familiar. E já lá vão cerca de trinta e oito anos de (bom) padecimento!
Se tivesse de compor um elogio de um parágrafo que servisse de cartão-de-visita às novas e velhas gerações, o que diria de Bordalo?
São difíceis de fazer essas sintetizações. Foi um homem que optou por viver «fora da caixa»: fez o que quis, afrontou o poder instituído com o riso, a malícia e a crítica; foi um homem livre de pensamento e acção e por causa disso também teve os seus grandes dissabores. Viveu a vida que escolheu viver. Viveu poderoso e morreu pobre.
Sendo Bordalo Pinheiro uma espécie de artista dos sete ofícios, qual das suas vertentes artísticas considera mais aprimorada e essencial?
Mais aprimorada a cerâmica, pois conseguiu produzir verdadeiras maravilhas com a mais modesta das matérias-primas – o barro. Sirva-nos de exemplo a Jarra Beethoven. Mais essencial a sua prática como jornalista/caricaturista, que conseguiu traduzir a realidade de um país ao longo de dezenas de anos, sem nunca perder aquela verve que lhe é tão peculiar. Essencial, senão como saberíamos nós dos pequenos nadas daquela época, contados naquele tom jocoso mas verdadeiro que punha a cru as jogadas e os podres da política de então? E desde já uma declaração de interesses: para mim Rafael Bordalo Pinheiro é o caricaturista, o desenhador, o homem dos jornais.
Há forma de distinguir Bordalo Homem de Bordalo Artista?
Acho que não porque se Bordalo não fosse aquele homem com aqueles pecadilhos, amores, defeitos, crítica feroz e arte nas mãos, não teria existido o Artista que ele foi; Homem e Artista são indissociáveis.
De que forma está a obra de Bordalo Pinheiro ligada à cidade das Caldas da Rainha?
O grande traço umbilical entre a cidade e o Mestre estabeleceu-se pela criação da sua Fábrica em 1884 e, tendo Bordalo morrido em 1904, o seu filho Manuel Gustavo responsabiliza-se pela continuação da sua laboração, até que em 1908 é a mesma arrematada em hasta pública: morre assim o grande sonho de Rafael.
A cerâmica de Bordalo Pinheiro é uma causa perdida? De que forma se poderá recuperar tamanha herança?
Hoje em dia temos que falar de duas cerâmicas de Bordalo: aquela que ele criou e das quais algumas peças ainda são produzidas com o mesmo engenho, arte e respeito pelo autor; e temos outra, que diz-se ser do Bordalo, mas a parecença fica-se pelo nome…
O que resta de Bordalo Pinheiro nas Caldas da Rainha para quem queira conhecer a sua herança?
Aconselho a leitura de «As Caldas de Bordalo» como guia dessa viagem, até porque o livro até contém várias informações acerca de coisas que neste entretanto já desapareceram.
Que memórias e saudades guarda a Isabel Castanheira da Livraria 107?
Muitas saudades… E se a vida tem altos e baixos, o apogeu da minha vida foi sem dúvida ter a Loja107… E dessa perda ainda não me curei e duvido que alguma vez venha a curar-me.
Como situaria Bordalo Pinheiro em termos políticos?
Pergunta difícil essa. Era monárquico, republicano, mação, makavenko … Anarquista de um Chiado gauche?…. Parece-me bem.
O que diria Bordalo Pinheiro sobre aquilo em que se transformou um século depois do seu desaparecimento?
A esta hora já tinha dado cabo de todo o seu material de escrituração e desenho; já não restava nada. E sabe porquê? Com a tarefa de alterar as legendas e as datas das ilustrações publicadas nos seus jornais; um trabalho de actualização porque os factos são quase os mesmos, mudam os cenários… E de certeza que lá tornava Bordalo a pôr a Maria «a rir, rir sem descanso, de boca escancarada de todos os mil grotescos que por aí fervilham como formigas num açucareiro» [Pontos nos ii].
«As Caldas da Bordalo» parte das crónicas que a Isabel escreveu para a Gazeta das Caldas mas ultrapassou-as com a inclusão de elementos, tanto na vertente histórica e política como pela própria dinâmica visual. Como decorreu esse trabalho de pesquisa.
Foi uma investigação sem rei nem roque, feita ao sabor das oportunidades, das informações que me foram transmitidas e de muitas, muitas leituras de autores do final do século XIX; não sou historiadora (a minha formação é em Gestão), por isso não tenho cânones a que obedecer; deixava-me levar pela minha imaginação e depois, se possível, colava-lhe factos relatados. E escrevi-as com toda a liberdade, sem estar sujeita a prazos ou a princípios, com o mesmo espirito com que Bordalo desenhou as inúmeras ilustrações que povoam agora as páginas do meu livro. Eu não investiguei: eu mergulhei na obra de Bordalo e transfigurei-me numa das suas personagens, a Maria dos pontos nos ii, e assim servi de cúmplice e companheira em todas as páginas de Bordalo. Sempre me senti como personagem, o que foi óptimo porque, sempre à coca, vive muitas aventuras e fiquei a saber muitos segredos…. Inconfessáveis…
Nestes 89 passos, para além da componente história nota-se uma grande melancolia da sua parte ao revisitar as obras e as marcas de Bordalo deixou. Há nestas páginas qualquer coisa como a lamentação do esquecimento?
É a primeira vez que alguém me faz esse reparo; tem razão. Lamento o esquecimento mas posso dizer-lhe que, mais do que lamentar, indigna-me tal atitude. Mas sei também que existe por parte da Câmara Municipal uma nova atitude quanto à herança Bordaliana caldense. As coisas vão mudar. A melancolia também poderá advir dum sentir feminino que vê desaparecer, perto de si, valores físicos ou não, que ocuparam lugares importantes na sua vivência citadina e pessoal.
Como classifica a direção de arte e o desenho gráfico de Miguel Macedo, transformando este num cruzamento entre as edições mais modernas e um ar de jornal datado?
Não poderia ter arranjado melhor companheiro para esta aventura que o Miguel Macedo. Extremamente profissional apercebeu-se das oportunidades que toda a obra gráfica de Bordalo lhe apresentava. E serviu-se desse facto, nunca a desvirtuando, melhorando-a sempre, enriquecendo-a servindo-se dos todos os novos processos técnicos e conhecimentos que um designer gráfico hoje em dia dispõe. «As Caldas de Bordalo» não eram estas que hoje conhecemos se não tivesse sido o Miguel Macedo a cuidar delas com todo o carinho e dedicação. Tratou-as com o máximo desvelo e imaginação, fazendo com que o seu trabalho final se destaque entre muitos livros publicados, alguns com uma falta de gosto impressionante e outros com capas perfeitamente inqualificáveis, ferindo a mais impenetrável sensibilidade.
Pode dizer-se que este é o livro da sua vida?
Pode. Dificilmente terei oportunidade de publicar um livro como este. Mas se me for dada uma nova oportunidade, pode ser que ainda por aí apareça o segundo livro da minha vida …. E quem sabe um terceiro?…
Na introdução que escreveu para «As Caldas de Bordalo» fala do início de um longo caminho para a descoberta da obra de Bordalo. O que se segue agora?
Tenho demonstrado um grande interesse por outra faceta do trabalho gráfico de Bordalo, até então pouco estudada, pelo que sei: Bordalo como ilustrador de Livros. É um assunto fascinante: primeiro conseguir esses livros, depois ver se as ilustrações não foram vandalizadas, verificar que as colocadas em extra texto continuam a fazer parte dos volumes; reconhecer a assinatura de Bordalo e verificar que, em algumas das ilustrações, surge uma personagem em tudo semelhante ao autor. Chama-se a isto atrevimento, o autor transformar-se em personagem de uma história? Chama-se ironia… E já agora sabe que a primeira edição do grande Camilo Castelo Branco é ilustrada por Rafael Bordalo Pinheiro? É verdade: trata-se de «O Demónio do Ouro», publicado em 1873. Concorda ou não comigo, que este é um tema capaz de seduzir qualquer Bordaliano? É sem dúvida.
Imagem de Isabel Castanheira retirada do blogue Águas Mornas
1 Commentário
Muuuuuuuuuuuuuuuuuuuito bom. Grata.