44 anos. Foi este o tempo que demorou até que “Se esta rua falasse” (Alfaguara, 2018) – “If Beale Street Could Talk” no original -, um monumento literário a preto e branco escrito por James Baldwin, fosse publicado em Portugal.
Estamos perante uma tragédia mundana, que nos coloca diante de um casal cheio de sonhos que, de repente, fica em estilhaços: Fonny, de 22 anos, preso com uma falsa acusação; e Clementine, de 19 anos, grávida. As famílias de ambos, ainda que tão diferentes quanto água e azeite, parecem conseguir deixar as diferenças de lado para encontrar as provas que ilibem Fonny do crime que não cometeu mas, como poderia ter dito Cormac McCarthy, este país não é para pretos.
Desesperança, ódio, injustiça e racismo atravessam este curto mas fundamental romance de Baldwin, que por entre a cortina de fumo denso ainda descobre um lugar para a sensualidade, o tempo para uma canção, a poesia para transformar o mundo num lugar melhor.
A escrita de Baldwin percorre vários ambientes, tanto descrevendo o clima conflituoso de uma sábado à tarde entre homens – “…é como uma nuvem por cima de nós, é como esperar que a tempestade rebente.” – a negação da Igreja como a salvação – “Agora sabíamos que ninguém noa amava: ou melhor, sabíamos agora quem nos amava. Quem nos amava não estava ali.” -, o que é crescer em condições sub-humanas – “…é incrível pensarmos no número de bebés que foram criados em lugares como estes, com ratazanas do tamanho de gatos, baratas do tamanho de ratos, lascas de madeira por todo o lado, e ainda assim sobreviveram. Não queremos pensar nos que não conseguiram sobreviver; para dizer a verdade, há sempre algo de muito triste nos que conseguiram, ou conseguem.” – ou negando o estatuto da América como a Terra Prometida – “É preciso dizer que eu não acho que a América seja o lugar ideal, ou uma oferta de Deus, para ninguém – se for, os dias de Deus estão decerto contados.”. Mas há também humor e uma ironia bem particulares, como quando, a certa altura, diz que “alguns homens lavarão os seus carros, ao domingo, com mais cuidado do que têm quando lavam o prepúcio”.
E tal como uma fénix, depois de tudo ter ardido até às fundações, haverá ainda espaço para a mudança, para que das cinzas se construa a tal mudança por que tanto anseia Clementine. No virar da última página, aquele grito poderoso ficará a ecoar na mente do leitor, também ele desperto como os mortos que acordaram. Um triste e belo retrato da condição humana.
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