“A Minha Filha morreu no dia 26 de abril de 2016”. A partir da criação de um outro ser literário, quase um alter-ego nascido da raiva, da perda e da impotência, Tiago Ferro exorciza como pode aquilo em que ninguém se atreve a pensar mas que ele teve de enfrentar: ver uma filha ainda longe de tocar a adolescência morrer.
“O Pai da Menina Morta” (Tinta da China, 2018) foi um dos livros mais impiedosos publicados em Portugal no ano passado, o retrato de uma devastação interior à beira da loucura onde o narrador se apresenta como o seu próprio carcereiro, alguém que, recriando um famoso quadro de Rembrandt, faz uma autópsia a si próprio, enquanto vai insistindo numa cantilena com um certo toque Burtoniano: “Não. Você não vai morrer. Nunca mais”.
Este é um pai que “será sempre inadequado. Em todos os lugares”. Um leproso que vai a aulas de Ioga, se atira à professora e que tem com ela sonhos húmidos; que vai a sessões de terapia que o deixam ainda menos terapêutico; que tem como maior desejo poder “gozar sem culpa”.
Tiago Ferro faz também uma auto-crítica literária, mostrando uma auto-aversão por transformar o luto em matéria vendável, servindo de marketeer ao lado negro da Força sacando de um teaser para uma possível leitura do romance: “As pessoas vão ler o seu livro porque nunca foram a uma noite de autógrafos de um autor morto”.
Ao longo do livro o leitor vê-se também confrontado com o olhar do médico, do coveiro, do vendedor de caixões ou do “pessoal da editora” que deseja as entranhas do escritor, tudo intercalado com definições alternativas arrancadas a um dicionário indie-depressivo, listas de medicamentos, de prescrições, de medos e de supermercado, o desabafo das tarefas a realizar e momentos de puro diário, para lá de posts, mensagens e comentários deixados no impessoal facebook.
Criando futuros hipotéticos (e, na sua maior parte, pouco prováveis), lançando questões para a filha viva (“O que a minha filha vai pensar quando ler este livro?”) e autoflagelando-se a cada página por não se conseguir libertar de um sentimento de culpa, o autor partilha com o leitor uma tragédia pessoal, chegando mesmo a interpelá-lo quando o negrume se adensa: “[leitor amigo] Você não acha que em algum ponto será preciso oferecer uma saída? Um pouco de luz, talvez?”. Que Tiago Ferro possa, um dia, encontrar essa luz.
“pronome
1 PRON. TRAT. aquele a quem se fala ou se escreve
2 PRON. INDEF. pessoa não especificada; alguém <Hoje começa uma nova vida para você. Você pode deixar tudo do lado de fora: roupas, contas a pagar, memórias, desejos, dúvidas e esse câncer no fígado. Aqui você não vai mais chorar. Você é O Pai Que Se Fodeu. Eu te conheço. Isso termina aqui. Acabou essa história de artigo na revista, post no Facebook e livro. Você não pode mais pensar na sua filha. Na sua mulher. Nos seus pais. Você nunca mais vai transar. Você não vai sentir falta. Eu garanto. Você vai virar outra coisa a partir de amanhã. Você vai ser um número. Não. Você não vai mais sonhar. É expressamente proibido em casos como o seu. Você não vai mais comer, beber, tomar banho. Você vai se esquecer de que tem pênis e ânus. Você vai tocar o seu rosto e não vai sentir mais a boca. Nem os dentes, nem os olhos. Nem os dentes, nem os olhos. Você não faz perguntas aqui. Você vai desaprender a falar, a gritar, a berrar e a cantar. Você vai virar um caco. Pior que isso. Um troço. Você nunca mais vai dormir. Você não tem cura. Temos que acabar com você. É o único jeito. Você me chamou no seu sonho. Implorou que eu te trouxesse para cá. Você não vai mais ter nome, cor, textura, densidade. Não, você não vai ser pura energia. Você não está morto. Você é O Pai da Menina Morta. Você agora vai vestir este camisolão branco. Você vai ter o seu cabelo, os seus pelos, o seu fígado e o seu períneo raspados. Você vai sobreviver aqui por novecentos e setenta e quatro dias. Depois disso você não vai querer mais sair daqui. Você vai começar a crescer enroscado na grade da cela. Você vai virar uma trepadeira. Ninguém vai te dar água. Você vai secar. Você vai virar um galho esturricado espetado num montículo de areia suja. Não, você não vai morrer. Nunca mais.>”
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