O que fica marcado a ferros na memória após a leitura de “Viagem ao Infinito” (Marcador, 2015), de Jane Hawking, ex-mulher do celebríssimo físico Stephen Hawking, é a ideia de heroísmo. Não um heroísmo convencional, mais próprio do mundo literário ou do mundo cinematográfico – ou sequer relativo aos feitos fenomenais que se tornam lendários e ficam no imaginário coletivo -, mas antes um heroísmo do quotidiano, não menos bravo ou apaixonado do que o de um herói da pátria ou de um herói mitológico, mas mais discreto, silencioso e ignorado. A biografia de Jane Hawking é a narrativa de uma história bela e trágica, uma história de amor comovente e, acima de tudo – e como a própria autora refere -, uma história de repetidas batalhas épicas equiparáveis à de David e Golias.
O uso do termo épico poderá parecer descabido mas, de facto, as duras batalhas que Jane e Stephen travaram ao longo das suas vidas não são menos do que isso. O livro, escrito num tom intimista e com um estilo sofisticado e literário – sem nunca deixar de ser acessível e cativante -, leva-nos numa viagem de mais de um quarto de século pelo relacionamento do casal, um amor marcado pela cruel doença neuro-motora de Stephen Hawking – assim como pela sua coragem e persistência admiráveis – e pelas tentativas de Jane Hawking de manter o equilíbrio e a felicidade pessoais e da família, nunca negando ou sequer subestimando o carácter heróico do físico, algo que está mais do que estabelecido e que é sobeja e merecidamente reconhecido. O herói da narrativa é, porém, Jane: este livro narra a sua história, as suas memórias e vivências.
Jane Hawking é extremamente inteligente e, por vezes, dolorosamente honesta ao expor a sua fragilidade. Não se apresenta como uma figura titânica, uma mãe coragem que não quebra, um pilar inabalável, apesar de ser sem dúvida uma figura forte. Não é uma personagem de ficção idealizada, é um ser humano perfeitamente imperfeito e é isso que faz com que o leitor tome as suas dores e sinta uma empatia genuína. A inteligência de Jane em admitir a sua vulnerabilidade e falar de coração aberto sobre os seus momentos mais negros serve um propósito extremamente altruísta, útil e necessário: sensibilizar o público para os tormentos a que a doença neuro-motora sujeita quem dela padece e as suas famílias. De certo modo, estas memórias são também uma forma de activismo ao mostrar a luta de uma mulher que tenta gerir a doença do marido, as atenções que três filhos exigem e um mundo indiferente e frio em relação às necessidades práticas e emocionais de uma família nestas circunstâncias.
Mas, acima de tudo, trata-se de uma história de afectos e emoções. O amor e a amizade são fundamentais na vida de Jane e definem-na e, ao lermos como o casal contou com o apoio e a entrega altruísta de amigos e familiares, o coração só pode encher-se de satisfação e de uma renovada (ou nova) fé no ser humano. No entanto, a nossa heroína vê-se frequentemente derrubada e à beira do abismo e são as suas vitórias e feitos em circunstâncias devastadoras que a tornam heróica. Ao viver em função da doença debilitante do marido e das necessidades da família, tarefa hercúlea que enfrentou com amor e dedicação, Jane foi-se apagando, perdendo o seu viço emocional e intelectual, perdendo mesmo um pouco a sua identidade. O notável nela é a forma como conseguiu, sem nunca descurar o seu relacionamento e o compromisso que assumiu, ressurgir das cinzas da anulação e preservar a sanidade e a sua identidade pessoal.
“Viagem ao Infinito” é um testemunho de amor, de uma coragem imensa e de uma franqueza que chega a ser dolorosa mas, ao mesmo tempo, libertadora. É o heroísmo do quotidiano, de uma mulher que se vê esmagada pela doença, pelo génio e por um mundo tantas vezes hostil, que enfrenta o fim de um casamento em que investiu grande parte da sua vida e dedicação, que tenta manter a estabilidade familiar numa situação impossível e que consegue, apesar de tudo, manter e fortalecer o seu amor pelos outros e por si mesma.
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