O livro como objecto físico impressiona: “Becoming – A Minha História” (Objectiva, 2018), de Michelle Obama, é um tijolo de 400 páginas, uma montanha de palavras para escalar. Após algumas páginas, porém, a sensação de peso desvanece-se – a prosa é apelativa, o assunto cativante, e as folhas vão passando velozmente.
Enquanto Primeira-dama, Michelle Obama teve todas as palavras e acções sob escrutínio máximo, de forma a não prejudicar a imagem do marido. Livre destes constrangimentos, o seu livro de memórias mostra uma visão transparente e lúcida sobre as implicações políticas, de raça e de género que correm nas artérias da América actual.
“Becoming” percorre a vida de Michelle desde o modesto bairro no South Side de Chicago onde cresceu, até aos elevados palcos da política mundial. “Cresci com um pai com uma deficiência, numa casa demasiado pequena sem muito dinheiro, num bairro votado ao fracasso, mas também cresci rodeada de amor e música, numa cidade diferente e num país onde a educação nos pode levar longe”, conta. “Não tinha nada, ou tinha tudo. Depende de como quisermos contar a história”.
A vida no centro do furacão da vida política não deixou saudades: ”(…) digo aqui directamente que não tenho intenção de me candidatar à Presidência, jamais. Nunca apreciei política, e a minha experiência nos últimos dez anos pouco mudou isso”. Ainda assim, durante a década em que Barack Obama foi Presidente dos Estados Unidos, Michelle aprendeu bastante sobre ela própria, sobre o seu casamento, e sobre o país sui generis em que vive. Dá conta das muitas vezes em que se sentiu insegura e atacada, alvo fácil das mentiras e indecências várias que a deixaram frequentemente furiosa e magoada.
Há também momentos comoventes nesta biografia, alguns centrados na figura estóica do seu pai, portador de um deficiência degenerativa – Michelle tem o cuidado de separar subtilmente o homem da doença. Revela o seu lado mais digno e humano em alguns pormenores: por exemplo, como adorava o seu carro e cuidava dele meticulosamente, aproveitando qualquer desculpa para o conduzir.
A autora não deixa de fora o seu casamento com Barack, e as diferenças que os separam: ela é uma perfeccionista, com necessidade de planear as coisas ao pormenor; já o marido é descontraído, um optimista nato e um poço de confiança. A vida a dois não foi isenta de dificuldades, e o assunto é abordado sempre com candura e elegância.
No seu âmago, “Becoming” é a história de uma rapariga inteligente e talentosa que cresceu rodeada de uma família que a amava, e escalou a pulso a difícil montanha do sucesso profissional, sem esquecer as suas raízes. Do alto do posto de Primeira-dama, usou o poder mediático para dar visibilidade e apoio a diversas causas nobres, navegando nas águas infestadas de tubarões da política americana.
Para a parte final ficou o tubarão-mor Donald Trump, a quem chama “(…) um rufia, um homem que, entre outras coisas, rebaixava as minorias e mostrava desdém por prisioneiros de guerra, que desafiava a dignidade do nosso país praticamente em cada declaração”.
Michelle Obama é hoje a mulher mais admirada da América (uma sondagem recente confirma-o), feita de duas imagens sobrepostas: por um lado, a esposa e mãe-modelo; por outro, a profissional bem-sucedida. Soube transcender o papel acessório do cargo de Primeira-dama, dando-lhe uma densidade singular, e mantendo intacta a sua autenticidade, um bem escasso na política actual.
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