Já aqui o dissemos. Na Argentina a água deve ter um qualquer aditivo literário, tanta é a boa prosa que daí nos chega. Um exemplo recente dessa escrita refinada dá pelo nome de “Uma Pequena Sorte” (D. Quixote, 2018), romance de Claudia Piñeiro que, ainda no mês passado, levou para casa o Premio Pepe Carvalho de novela negra pelo conjunto da sua obra.
Mary lohan, em tempos Marilé Lauría ou ainda María Elena Pujol, regressa à Argentina duas décadas depois de uma tragédia que a obrigou a deixar tudo para trás, reinventando-se numa nova e transformada vida nos Estados Unidos, quase como se estivesse no Programa de Protecção de Testemunhas.
Irá assim regressar e viver em Temperley, trabalhando temporariamente no Colégio Saint Peter, no qual foi professora, pondo finalmente à prova a máscara que colocou no rosto desde o dia em que deixou para trás a sua família sem qualquer despedida. Um duro confronto com o passado que terá começado com o empurrão de Robert, o seu companheiro, numa fuga que a certa altura Mary justifica desta forma: “A minha causa era uma causa perdida: nada se pode fazer quando toda uma comunidade julgou e condenou“.
Será nesse confronto com “o abismo que atrai e assusta“, num presente onde tenta ser o morcego que “escolheu sair de trás da madeira e enfrentar a luz“, que Mary procurará libertar-se das várias prisões onde está há décadas encerrada.
A escrita de Claudia Piñeiro viaja entre a delicadeza e a aspereza, numa história onde há poesia, intimidade, mistério e uma apologia do destino como avesso ao acaso – será, mais do isso, uma questão de sorte. Ou, antes, de uma pequena sorte.
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