Há coisa de dias, surgiu a notícia de que a Netflix vai adaptar diversos livros de Roald Dahl a séries animadas, tudo com a concordância da Roald Dahl Story Company, que descreve desta forma o espírito que comanda a empreitada: “manter-se fiéis ao espírito de Dahl, ao mesmo tempo que constroem um universo de histórias criativas que se expandem bem para além das páginas dos próprios livros“. Uma selecção que incluirá clássicos do icónico universo narrativo do escritor britânico, entre eles “Charlie e a Fábrica de Chocolate”, “Matilda”, “O Amigo Gigante” e “Os Idiotas”, todos eles publicados em Portugal pela Leya/Oficina do Livro.
Um dos títulos que não virará série mas foi já adaptado ao grande ecrã é “James e o Pêssego Gigante” (Oficina do Livro, 2018), uma história com uma costela Dickensiana que mostra toda a classe, virtuosismo, humor e alegria que Dahl incutia a cada uma das suas histórias, apontadas ao público infanto-juvenil mas, igualmente, capazes de proporcionar aos adultos horas muito bem passadas.
James Henry Trotter, o protagonista, viveu uma vida tranquila até aos quatro anos de idade, até que os pais, num dia de compras em Londres, foram devorados por “um enorme e furioso rinoceronte”, que tinha conseguido escapar do Zoo. James acabou por se ver despachado para casa das suas odiosas tias, que tinham tudo menos conforto ou carinho para lhe oferecer, preferindo bater-lhe ou chamar-lhe coisas como “bestazinha repugnante”, “praga nojenta” ou “criatura miserável”.
Sem brinquedos para brincar ou livros para ler, James morava “numa casa estranha e meio desconjuntada no cimo de uma grande colina”, num quarto “tão vazio como a cela de uma prisão”, do qual não era autorizado a descer a não ser em dias em que as tias não tivessem acordado com os pés de fora (que eram quase todos os do ano).
A sua vida parece condenada à tristeza total, até dar caras com um velho que cheirava a mofo e a bafio e que lhe oferece um saco com o que parecem ser “cristais ou pedras, cada um do tamanho de um bago de arroz”, e que o velho descreve serem “mil línguas de crocodilo compridas e viscosas, cozidas no crânio de uma bruxa morta, durante vinte dias e vinte noites, com os olhos de um lagarto!” e outras coisas como dedos de macaco, tudo muito bem fervido com a bênção da lua.
Quando James as deixa cair por acidente, o pessegueiro meio mirrado que nunca havia dado frutos começa a crescer como o feijoeiro mágico de uma outra história, lançando James numa aventura onde habitam criaturas verdadeiramente fantásticas – e que fará com que olhe, finalmente, com alguma alegria para o mundo.
“James e o Pêssego Gigante” tem também uma veia de musical literário, à semelhança de, por exemplo, “Charlie e a Fábrica de Chocolate”, a magistral adaptação de Tim Burton ao cinema que conta com uma banda sonora exemplar. Uma história emblemática sobre a amizade que, para lá de uma aventura de todo o tamanho, nos brinda com versos tão divertidos – e gráficos – como estes:
“Já devorei pratos raros e deliciosos,
Bichos-de-conta em lama, lacraus e mosquitos viscosos.
Os ratos com arroz são um belo manjar
Se forem assados depois de engordar.
(E uma pitada de terra eu lhes juntar.)
Adoro hambúrgueres de terra no carvão
Omeleta de piolhos, ovos de pulgão e vespas em alcatrão.
Antenas de caracol nunca me deram asco
Nem uma calda de besouros dentro de um frasco.
(Principalmente acompanhados por um damasco.)”
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