Entramos em “Meu Velho Guerrilheiro” (Gato Bravo, 2018), do escritor brasileiro Álvaro Filho, e logo na frase inicial encontramos a espinha dorsal do livro: “Não, não sei ao certo se foi meu pai quem matou o Presidente. Sei apenas que andou a planejar fazê-lo. Não, não sei ao certo se foi meu pai quem puxou o gatilho. Sei apenas que andou a procurar por armas. Não, não sei ao certo se meu pai é um assassino. Sei apenas que é o meu pai”.
Foi com o pai do autor que nasceu a faísca de inspiração para este livro: “Antes da reeleição de Dilma, num almoço de família, o meu pai começou a dizer que ia haver um golpe”, explica o escritor brasileiro em entrevista recente. “Naquela época, há quatro anos, nós achávamos que a democracia no Brasil não permitia uma coisa dessas, parecia uma coisa do passado”.
O tempo viria a dar razão ao ancião, com o impeachment da Presidente e a subsequente degradação política no Brasil. A partir desta circunstância, o autor construiu uma ficção semi-autobiográfica, na qual um escritor emigrado em Portugal – como o próprio autor – recebe um telefonema desesperado da mãe, vindo do outro lado do oceano: “Parecia a voz de alguém soterrado, a pedir socorro. Meu pai, sempre o meu pai. Meu pai estava impossível. Ele precisava de mim. Ela precisava de mim. O mundo dela em ruínas”.
Salta à vista o ritmo particular da linguagem, com o uso frequente de ecos, frases curtas e repetições de palavras, num padrão ritmado, quase musical, que nos embala com evidente mestria. É o dialecto de quem não quer esquecer, de quem procura o início de um novelo para se guiar nos labirintos do esquecimento. Um dialecto que se relaciona directamente com a personagem do pai, em processo de alheamento da sua própria identidade.
“Meu Velho Guerrilheiro” tem muitas facetas: biografia, romance, política e poesia caminham de mãos dadas neste livro. Abordam-se temas como a identidade e a memória, a cadência das gerações como se fossem marés, a liberdade como antídoto para a repressão, ou a firmeza de convicções como traço de carácter.
É um livro militante no melhor sentido do termo, apesar de não tomar um partido declarado: “(…) não peço voto a ninguém no livro, nem elogio um plano de governo”, diz o autor. “A democracia, no meu ponto de vista, não é tratar todos iguais, mas dar chances para que todos obtenham os mesmos direitos e, principalmente, benefícios. A política, para mim, é um ato de generosidade e se alguém for tocado por esta ideia ao ler o livro, acredito que ele fez o trabalho dele”. Em tempos de Bolsonaro, “Meu Velho Guerrilheiro” é um livro indispensável.
1 Commentário
Acabei de ler o livro do pernambucano Álvaro Filho, a quem conheço – literalmente – dos carnavais de Olinda. Creio que tivemos, Nuno e eu, opiniões parecidas. Bom exemplar da literatura contemporânea de língua portuguesa.
Em tempo: acabo de lançar um livro de crónicas, chamado “O tio do pavê” – crónicas que foram publicadas aqui na revista Veja S. Paulo, de 2016 a 2018 – e queria enviar ao blogueiro, Como faço?