“Estou morto, de olhos cerrados, mas percebo tudo (ou quase) do que acontece à minha volta. Sei, estou deitado dentro de um caixão, num salão cheio de flores, as quais, em vida, me fariam espirrar. As pessoas não sabem que flores de velório cheiram mal? Sabem, mas a tradição é mais forte e velório sem flores é para pobre. Ora, não somos pobres, dominamos uma nação.”
Com mais de vinte obras publicadas, Pepetela consegue continuar a surpreender o leitor, mantendo a essência que o fez nome maior da literatura angolana. “Sua Excelência de Corpo Presente” (D. Quixote, 2018) é o seu mais recente romance, onde conta a conturbada história das últimas décadas de um qualquer país africano, recordada pelo seu presidente defunto.
O ditador africano jaz num caixão, onde descobre que está morto mas, também, consegue pensar, ver e escutar todas as conversas e sussurros ao seu redor, adivinhando em alguns casos até mesmo pensamentos. Neste estado, “Sua Excelência” vai passar em revista episódios da sua vida, resgatando memórias e recordando peripécias vividas com muitos dos que lhe vieram dizer um último adeus — desde a primeira-dama e outras (muitas) mulheres e namoradas de quem foi tendo numerosos filhos, que se perfilam sobre o seu olhar atento, até às mais altas dignidades do Estado e ao seu fiel espião-de-um-olho-só.
A narrativa decorre exclusivamente durante o seu velório, intercalando capítulos em que revive momentos marcantes — desde as suas origens ao seu percurso de ascensão e poder — e em que se depara a analisar as ‘movimentações’ e pensamentos dos que o rodeiam, com todas as conspirações relativas à sucessão, num novo ciclo político e social. Tudo isto no estilo irónico, inteligente e sagaz de Pepetela, que tece uma crítica mordaz ao poder político, aos abusos de poder, às disputas e jogos de interesses e aos sistemas totalitários disfarçados de democracia, onde reina a corrupção e o oportunismo bajulador.
O leitor sente que a escrita vai divagando, tal como divagam e se dispersam os pensamentos, aqui representados quase como um monólogo ininterrupto sobre uma vida de aventuras e enganos, que culminou na idolatria ao ditador. Divagações que de início não sabemos onde nos vão fazer chegar, mas que cumprem o propósito da crítica, em jeito de sátira, que é chave da literatura do autor.
Ainda que não especificando um local, não faltam expressões que nos situem no continente africano, como ‘kumbu’, ‘mambo’, ‘meu kamba’ ou ‘grande maka’. Não se tratará (parece certo!) de um país imaginário, ainda que se situando no reino da ficção, mas antes um país imaginado por um autor atento e conhecedor da história do mundo que o rodeia (e isso muda tudo!). Por isso mesmo torna-se uma leitura interessante, de um sarcasmo implacável, aos meandros políticos de um país que eternizou um ditador no poder, mas assiste agora às lutas para a sua sucessão, adivinhando-se ventos de mudança.
“Roubam uns mais que os anteriores e todos entre si, não dá para mudar, muito menos prometer mudanças radicais, enquanto não houver gente instruída de outra índole formada de outra maneira. Isso dizem os críticos, sempre bons a julgar os outros. No entanto, quem vai para o poder sempre acha ser capaz de fazer diferente. Para, tempos depois, lhe dar um tédio tremendo porque se vê a fazer o que observava no antecedente, sem nunca evitar as asneiras mil vezes repetidas.”
“Sua Excelência de Corpo Presente” foi lançado em Outubro no festival literário Escritaria, em Penafiel, que este ano escolheu Pepetela como o escritor homenageado.
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