“Um romance existencial decididamente optimista”. É desta forma que o escritor Antonio Tabucchi olha para o seu romance “Afirma Pereira” (G. Floy, 2018), obra emblemática contra o totalitarismo e a censura que chega agora às livrarias – e em modo de novela gráfica – pelas mãos de Pierre-Henry Gomot, que ao nível das ilustrações lhe confere um requintado toque francês.
Pereira sentia-se um bom católico, na medida em que acreditava na ressurreição da alma, não tanto da do corpo, algo que o começou a preocupar seriamente depois de ler uma reflexão sobre a morte assinada por um tal de Monteiro Rossi.
Depois de uma investigação que o conduz até Rossi, este diz-lhe ter praticamente decalcado a tese dos escritos de Feuerbach, e que na verdade prefere a vida à morte – isto dito a alguém que tem por hábito falar com a mulher morta e que, sempre que sente o pecado a bater à porta, vai procurar a confissão. Ainda assim e sentindo-se em falta perante Rossi, contrata-o – do seu bolso – para escrever as biografias antecipadas de escritores famosos para o jornal católico Lisboa, onde trabalha.
Ao receber a primeira biografia, Pereira percebe estar diante de uma bomba-relógio, deixando um conselho que, aos poucos, vai servindo a ambos: “Não sei se você é um inconsciente ou um provocador. Mas garanto-lhe que o jornalismo que se faz hoje não tem lugar nem para uns, nem para os outros”.
Marta, a namorada de Rossi, é uma brasa e uma anarco-individualista, e será este casal que vive na obscuridade, escondendo-se de uma censura que se faz sentir em cada esquina, que fará com que Pereira volta aos poucos à vida, questionando-a, trocando as limonadas com açúcar pelo Porto seco.
Uma vida na clandestinidade alheia e um posterior reencontro onde, a partir das alterações físicas, Pereira fará um retrato corporal do peso da provação e do murchar da liberdade: “Aquilo que o entristecia mesmo, era que as costas de Marta, que recordava suaves e arrendondadas, mostravam duas omoplatas ossudas, como duas asas de frango”.
Gomont capta toda a melancolia de uma cidade sitiada, mostrando-nos “aquele céu atlântico, cristalino” mas, também, os terraços, os estendais, as ruas apertadas, os largos movimentados, o tropicalismo do Príncipe Real, o Jardim Botânico ou o Cais do Sodré.
Romance existencial que exulta as convicções sobre o medo, o humanismo sobre o pavor do comprometimento, “Afirma Pereira” ganha aqui uma representação visual sublime, herdeira da tradição da BD francófona, numa edição servida em capa dura e em grande formato que oferece ainda um caderno de esboços e desenhos da viagem de documentação que Gomont fez a Lisboa no Verão de 2015. Uma das grandes edições de 2018 no que diz respeito à BD publicada em Portugal.
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