Rodrigo Guedes de Carvalho é, como se costuma dizer na gíria popular, um tipo sem papas na língua. Mesmo aqueles que não leram qualquer dos seus romances ou não tiveram ainda oportunidade de assistir a uma conversa literária onde este esteve presente, terão certamente dado conta, no pequeno ecrã, da sua veia contestatária, do espírito mordaz e do olhar pungente sobre a condição humana. Uma filosofia de vida que, de cabeça, tem saltado para dentro dos seus romances, habitados por personagens apaixonantes e que cortam quase sempre a direito, desafiando igualmente o leitor a pensar na sua própria visão do mundo.
“Jogos de Raiva” (D. Quixote, 2018) não foge ao universo crítico de Rodrigo Guedes de Carvalho que, tendo como pano de fundo o (des)encanto das redes sociais, traça um retrato a preto e branco da sociedade na sua era mais marcadamente moderna e tecnológica, onde o ódio conduz a um estado de guerra permanente que, a cada dia, se renova mudando de alvo, de causa, de mote para a indignação ou de tema de conversa.
A partir de um suicídio duplo, imortalizado numa troca de cartas curtas, “Jogos de Raiva” olha para este mundo global a partir da árvore genealógica de uma família, e de como os segredos tendem a miná-la numa erosão lenta mas inevitável, fazendo do amor um sentimento confuso e misterioso: “Será sempre um mistério. Mesmo que alguém descubra a origem das galáxias, ou se há ou não deuses verdadeiros, é um mistério a violência de que são capazes as pessoas que se amam“.
Uma das personagens centrais é Francisco Sereno, um sexagenário que, após a neta Catarina nele ter plantado a semente, decide entrar no mundo das redes sociais, algo que rapidamente o irá levar do deslumbre à incredulidade.
Eterno aspirante a escritor, recordando de certa forma Joe Gould – que Joseph Mitchell imortalizou em “O Segredo de Joe Gould” -, Sereno irá envelhecer num sopro com os insultos diários gratuitos, a exposição diária alheia ou a forma como a ideia de privacidade se parece ter esvaziado. Porém, fascinado por uma dinâmica que se vai medindo em gostos e visualizações, sente que terá chegado a sua hora, acabando por lançar o tão adiado livro com o nome de “O Fantoche”, uma prosa sem filtros que lhe vale o tão desejado falatório público e apreço da crítica – “veio agitar consciências e esgravatar feridas com o dedo certeiro das suas reflexões“, lê-se algures – mas, também, a reprovação familiar, sobretudo a do filho Nuno, jornalista, que sente o livro como um ataque à classe e, mais do que tudo, pessoal.
Sereno tem três filhos – Nuno, Ana Teresa e Santiago – com a esposa Maria Clara, licenciada em Medicina e especialista em Psiquiatria, que nasceu para ser a “âncora, uma ferradura de ligação à terra, a tonelada invisível que mantém o navio minimamente defendido das correntes que por baixo dele chocam de frente“. Ana, a filha, tem no baixo eléctrico a sua primeira voz, enquanto Santiago, autista, irá percorrer uma “dolorosa caminhada de estupefaccção com o mundo e com o que as pessoas são quando ninguém está a olhar”.
Num livro atravessado pelo fantasma de “Mrs. Dalloway”, livro de Virginia Woolf constantemente referenciado ao logo da narrativa, aponta-se também Oscar Wilde como uma potencial estrela das redes sociais: “A verdade é que Wilde tem mais pensamentos avulsos do que estruturas narrativas organizadas. Um único romance e algumas peças. E um sem-fim de frases destinadas ao eterno. Oscar Wilde foi, muito à frente do seu tempo, o mais exímio criador de epigramas. Seria hoje a estrela maior das redes sociais”. Mas há também referências ao “Big Fish” de Tim Burton, que serve para ilustrar a luta maior do livro: a de um pai e de um filho que vão discutindo o jornalismo, um poder situado algures entre o espírito da Liga da Justiça e um desejo antropófago e canibal.
Há, desde as primeiras páginas, a ideia de um segredo que irá testar esta família até aos seus limites, mas são muitos os temas que Rodrigo Guedes de Carvalho toca neste seu novo romance: o 11 de Setembro como a inauguração de uma nova época – “a imagem das infinitas possibilidades do terror” -, a sexualidade, a depressão, o racismo, a guerra, a adopção, a arte – “o exagero da ideia” -, ou até mesmo os chefs, alvo uma bela paródia onde olhar para o prato dá medo depois de se saber que nele repousa “uma truta envolvida em baba de caracol, com não sei quê de uma infusão de tomilho e barbas de polvo das caraíbas”. Um romance intenso, irónico e comovente.
Sem Comentários