Antonio Muñoz Molina é um reconhecido escritor espanhol e académico – começou a publicar há mais de 30 anos -, membro da Real Academia Espanhola. Em 2013 foi galardoado com o prémio Príncipe de Astúrias das Letras, sendo “Como a Sombra que Passa” (Ponto de Fuga, 2018) um (merecido) finalista da edição deste ano do Man Booker Prize.
O livro acompanha o percurso do assassino de Martin Luther King, de seu nome James Earl Ray, desde o crime, a 4 de abril de 1968, até à sua captura pelo FBI dois meses depois, incidindo particularmente nos dez dias (de 8 a 17 de maio) que passou em Lisboa durante a sua fuga, a tentar obter um visto para Angola com uma das várias identidades falsas que assumiu: Ramon George Sneyd.
Graças à recente abertura dos arquivos do FBI sobre o caso e ao seu cativante estilo literário, Antonio Molina reconstrói, passo a passo e com grande intimidade, o crime, a fuga e a captura de Ray, cuja personalidade estudou muito a fundo, da fisionomia ao vestuário, da forma de comer ”às mãos cheias” aos seus gostos por mulheres, da esquiva maneira de olhar aos seus hábitos inusuais, das suas manias à leitura compulsiva e obsessiva de jornais na sua língua materna, numa Lisboa absolutamente e maravilhosamente protagonista de todo o livro, em três datas distintas e enquanto destino de três viagens que se vão alternando na cadenciada narrativa de Molina: a do fugitivo James Earl Ray, em 1968; a do jovem Molina, em registo autobiográfico divagador, surpreendente e humanamente muito tocante, que associa Lisboa a uma crise pessoal, em 1987, quando a visitou pela primeira vez em busca de inspiração para “O Inverno em Lisboa”, o seu segundo livro – que o consagraria; e a da viagem do escritor, já maduro, que tece a sua história nos dias de hoje.
Com este livro, escrito com uma concentração e uma devoção tais que comprometem para tal todo o seu Ser, Molina apresenta ao leitor um misto de thriller e de verdadeira arte de romancear, preenchendo com grande proficiência e acuidade eventuais “buracos“ na história de vida de Ray, numa cuidada reconstituição que faria inveja a muitos dos mais perspicazes investigadores policiais. Para descrever a secreta estada de Ray em Lisboa, por exemplo, o autor usa a sua própria experiência pessoal num exercício mágico e envolvente de sobreposição de espaço e temporalidade, fazendo coincidir os locais, as paisagens e os olhos de quem as vêem.
Molina entrelaça assim dois romances: o autobiográfico, eivado das suas magníficas memórias, e a história do assassino megalomaníaco de Luther King. O suspense da obra é permanentemente alimentado por detalhes que assombram o leitor (reais ou inventados), entreabrindo sempre rumos para novas conjecturas e possibilidades. Lisboa é, para Ray, um ponto temporário de queda, infinitamente expandido por Molina que, paralelamente, confessa ao leitor os seus próprios limites criativos na arte de (saber) escrever.
A magnifica qualidade narrativa, o registo íntimo de grande maturidade, a memória comprometida entre a verdade e a ficção, a grande preocupação sobre os mistérios da vida, o conhecimento profundo sobre o carácter fugaz e fortuito do instante, desafia continuadamente as percepções do leitor da primeira à ultima página e, pasme-se, de uma forma inteiramente livre. Um livro que fica retido para sempre, pela sua força transformadora, pela inegável e manifesta qualidade, na memória de quem o lê.
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