Antes de mais, fica o aviso: trata-se de literatura juvenil. Portanto, os leitores mais incautos ou menos atentos, devem ficar desde já informados de que “Vermelho como o Sangue” (Editorial Presença, 2015) não é um mistério escrito para adultos como os policiais de Mankell ou Nesbø, ou da “recente” avalanche de autores de narrativas nórdicas sombrias.
O que temos aqui é literatura juvenil competente, daquela que prende, apesar das suas (poucas) fragilidades, e aquilo a que se pode chamar “um presente egoísta”; ou seja, é um livro dirigido a adolescentes e jovens adultos que pais, irmãos mais velhos, tios e afins também poderão apreciar. No entanto, de notar que a linguagem jovem, maioritariamente nos diálogos, pode ser um pouco frustrante para os mais velhos, mas a inteligente tapeçaria a nível da escrita, misturando o discurso e expressões juvenis com uma narrativa fluida e mais adulta, salva o romance.
Posto isto, falemos do que interessa, da história e de Lumikki, a heroína adolescente que, apesar de roçar por vezes o inverosímil, nunca cai na indesejável categoria de caricatura. A história é um mistério envolvente e sólido que prenderá certamente o leitor sem se perder em reviravoltas inúteis e risíveis. Lumikki, uma jovem de dezassete anos independente e anti-social, aluna numa escola de artes em que se sente bem, mas onde não se integra (nem tem vontade de se integrar), descobre na câmara escura da escola uma pequena fortuna em notas de quinhentos euros ensanguentadas postas a secar. A partir daí, vê-se envolvida, primeiro contra a sua vontade e, posteriormente, movida pela curiosidade, numa intriga do mundo adulto em que uma menina certinha e com um salutar amor à vida não se deveria meter. E mais não dizemos, o leitor que se atire a este romance, que se lê de uma penada, e desvende o resto da história.
Mas se mais não se diz sobre a história, muito mais deve ser dito sobre Lumikki. Salla Simukka cria uma heroína marcante, com alguns tiques da Lisbeth de Stieg Larsson – apesar de pôr Lumikki a afirmar de forma mordaz num chiste irónico que sim, é a filha secreta de Hercule Poirot e Lisbeth Salander – mas, acima de tudo, com uma relutância que a torna mais próxima dos comuns mortais e mais verosímil como personagem adolescente. Lumikki, Branca de Neve em finlandês, vive sozinha, é independente, anti-social, reservada, madura, rija e não faz jus à personagem de contos de fadas passiva que lhe deu o nome. Contudo, há também nela uma vulnerabilidade e fragilidade, um coração magoado que cria empatia no leitor e que a salva de cair no ridículo do ideal de super-mulher que se parece julgar necessário para uma heroína; Lumikki é uma rapariga (quase) normal e, apesar dos arabescos necessários para criar uma personagem cativante e icónica, mais próxima e identificável com o público-alvo do romance do que uma Katniss Everdeen ou uma Tris Prior.
Em conclusão, trata-se de um primeiro tomo de uma trilogia que agradará certamente ao público jovem e também ao adulto, uma boa iniciação no noir pintalgado de neve e sangue a que os autores nórdicos nos têm vindo a habituar. Salla Simukka vai tecendo a sua teia com competência, não oferecendo nada ao leitor de mão beijada, atraindo-o e enredando-o para que fique com vontade de descobrir que mais esconde esta Branca de Neve que mais depressa atiraria a maçã à cara da rainha do que a comeria. Pois se há constantes referências e ligações aos contos de fadas, a realidade gélida e dura é o que persiste e se impõe, como se quer num policial nórdico.
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