A primeira vez que o leitor português terá ouvido falar de Gustavo Pacheco terá sido, muito provavelmente, no oitavo número da Granta portuguesa – dedicada ao Medo – com o conto “Ambystoma mexicanum ou o labirinto invisível”, que comprovava a velha máxima de que a dor – ou, em alternativa, a pobreza ou a dor de corno -, é o combustível de eleição para alimentar o motor da criatividade. Conto esse incluído agora em “Alguns Humanos” (Tinta da China, 2018), o primeiro livro do autor que reúne onze histórias marcadas por uma inquietação humana, na sua maior parte representada através de uma diversificada fauna animal.
Em “Doho”, num zoo onde cabem orangotangos e chimpanzés, navega-se entre o activismo de uma PETA civil e um retrato da condição humana, abençoado pelo espírito corta-pulsos de Stig Dagerman; “Alguns Primatas” apresenta-nos aos muriquis, os maiores macacos das Américas, proporcionando uma visita guiada e anti-romântica a um estranho zoo onde sobressaem as macacas feministas e os macacos hippies híper-sexualizados; em “Kakali”, o mundo pertence aos canibais cujos mitos urbanos apontam para uma degustação que varia entre a brasa e o caldeirão; “História Natural” aponta à observação de alces, num museu de onde se pretende retirar 14 maquetes que representavam cenas da vida dos índios da região dos Grandes Lagos na época do contacto com os brancos – tudo à boleia da obrigação de o museu ter um olhar mais ocidental para equilibrar com a exibição dos povos primitivos. Uma história onde o caçador vira presa e que é atravessada por uma fina ironia; “Kuek” faz um retrato da escravatura e do uso do álcool através do crânio de Kuek, “indistinguível a olho nu de centenas de outros que jazem na colecção osteológica do museu”. Kuek que “não foi rei, nem general, nem artista, nem criminoso”, mas um índio botocudo, na altura – cerca de 1816 – o inimigo perfeito do colonizador que se aventurava nas florestas do norte de Minas Gerais, sul da Bahia e Espírito Santo. “Pagãos, belicosos, com fama de anropófagos e grandes pedaços de madeira pendendo das orelhas e dos lábios perfurados, eram os mais selvagens dos selvagens”, acabando por ser dizimados em sucessivas guerras de extermínio – ou, nos casos mais felizes, escravizados; “O Amante da Mulher Mais Feia do Mundo” dá-nos a conhecer Julia Pastrana, nascida em 1834 na serra de Ocoroni, a mulher mais feia do mundo, “portadora de hipertricose lanuginosa congênita e hiperplasia gengival severa, o que causava abundância de pelos em seu corpo e seu rosto e lhe dava feições simiescas”. Alguém que, apesar de uma fealdade de respeito, acabou embalsamada, havendo aqui uma sessão mediúnica onde o marido explica porquê; “ A Emanação” mostra-nos a visão tibetana do Inferno e todos os seus departamentos, relatando a história existencial de dois infelizes que puxavam uma carroça cheia de blocos de pedra, indecisos sobre a ordem e o destino. Isto antes de nos explicarem a emanação como um super-poder reservado a alguns iluminados, que poderão escolher o que acontecerá com a sua essência divina; “Deus Não Se Vai Incomodar” leva-nos a uma repartição que vai assistindo à relação crispada entre Moacyr e Isaías, que abre espaço para uma banda sonora evangélica e um remate com o seu quê de Dexteriano; em “As Formigas” assistimos a uma adopção com ar de escravatura, numa história que, através de uma lição à volta das formigas argentinas e da sua divisão em reprodutoras, não-reprodutoras e machos reprodutores, aponta o foco à vida dura no interior e à violência doméstica; quanto a “Alguns Humanos”, o conto que dá nome a esta colectânea, mergulha no processo de escrita, fazendo a distinção entre realidade e ficção e, muitas vezes, embrulhando as duas. Uma história que brinca com o próprio livro e a escrita do autor, oferecendo uma tirada deliciosa e muito esclarecedora: “– Mas o livro não é sobre macacos. É sobre humanos. Está no título”. Por aqui iremos manter Gustavo Pacheco no radar como um dos escritores a seguir de perto.
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