São, mesmo para quem nunca teve a oportunidade ou a vontade de entrar numa, parte do imaginário de milhares de portugueses, sobretudo nos locais mais remotos do país. Falamos das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian ou, como muitos se habituaram a chamar-lhes, “aquelas carrinhas esquisitas”.
A Gulbenkian terminou o projectou em 2002, mas as carrinhas continuaram a fazer o seu trabalho, alimentadas por projectos municipais nascidos de norte a sul do país e, neste momento e com fundos à vista, são cada vez mais as bibliotecas itinerantes activas, estimando-se que, neste momento, sejam quase 70 a levar a literatura até onde ela não chega. Ou melhor, literatura e outros serviços, uma vez que as carrinhas funcionam cada vez mais como bibliotecas/loja do cidadão/posto de saúde.
Foram precisamente as bibliotecas itinerantes o ponto central de uma conversa promovida pelo festival literário Livros a Oeste, que juntou na Biblioteca Municipal da Lourinhã Nuno Marçal, responsável pela Bibliomóvel de Proença-a-Nova, Francisco Lopes, director da Biblioteca Municipal de Abrantes, e Maria Helena Melim Borges, directora-adjunta do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas. Uma conversa que teve como tema “Os Livros que Andam na Estrada”.
Nuno Marçal, que se desloca pelos quatro cantos do concelho de Proença-a-Nova com o estatuto de bibliotecário-ambulante, tem uma noção clara do seu público-alvo: “Uma significativa parte dos frequentadores da minha biblioteca não sabe ler nem escrever. Lê as gordas do Correio da Manhã ou do Record“.
“Estamos na periferia, da periferia, da periferia de um país periférico”, diz, antes de revelar a frase que ouviu na primeira vez em que, depois de uma trabalheira danada, ter conseguido montar o estamine: “Ó amigo, você aqui vai ter pouca sorte com o negócio”. Esta e outras aventuras são contadas no blogue O Papalagui, uma espécie de diário online de uma vida com muito de serviço público.
Para Nuno Marçal, as bibliotecas têm de ser muito mais do que apenas livros e leitura, realçando que “muitas vezes as bibliotecas esquecem-se de que servem as pessoas“. Pessoas que, no Portugal que normalmente não aparece nos jornais, precisam de outros serviços que, não os havendo noutro lado, fazem cada vez mais parte destas bibliotecas onde reina a versatilidade. Apesar disso, é da opinião de que “o país ainda não mostrou a gratidão por este serviço“. E partilha aquela que é, para si, a pergunta mais aterradora que lhe podem fazer durante as suas deambulações: “Ó Nuno, aconselha-me lá um livro!”.
A intervenção de Maria Helena recaiu numa análise sobre o processo de criação e desenvolvimento das itinerantes, começando por dizer que “o país esta igual a 1958, algo que não esperava“. Já o lema das bibliotecas, esse, mantém-se orgulhosamente o mesmo: “Quando o homem não chega ao livro, o livro chega ao homem”. A diretora-adjunta do Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas recordou que no dia 13 de Maio se assinalariam os 60 anos da criação das bibliotecas itinerantes, com o princípio de ir ao encontro sobretudo das crianças e, também, dos adultos que não sabiam ler ou eram semi-analfabetos. As carrinhas eram Citroen cinzentas, que eram depois transformadas e feitas à medida: livros infantis e para crianças em baixo, literatura e biografias no meio e, em cima, filosofia, poesia e livros técnicos. O grande objectivo era o de “criar habituação pela regularidade”. As carrinhas chegavam sempre à mesma hora, no mesmo dia da semana e sempre ao mesmo local. Quando avariava alugavam-se táxis e lá iam os livros, ainda que em quantidade mais reduzida. Livros que, por vezes, “transportavam mensagens de amor, de aldeia para aldeia”.
“Não sou a pessoa que anda na estrada, com muita pena minha”. Quem o diz é Francisco Lopes, director da Biblioteca Municipal de Abrantes, para logo acrescentar que “uma biblioteca não são quatro paredes. É o seu território“. Como forma de aproximação ao leitor, ou melhor, ao potencial leitor, Francisco rejeita o ancestral “se não leres vais ficar burro”, destacando antes o lado funcional do livro, os hobbies, defendendo uma resposta que todos os bibliotecários deverão ter sempre presente: “Há livros para tudo”. Em relação ao futuro das itinerantes, Francisco antevê o dia em que serão quadrilhas de drones a levar os livros às pessoas, esperando apenas que não se perca “a ideia de livro e de biblioteca”.
Um pessimismo que não é de todo partilhado por Maria Helena que, apesar de um dia se ter declarado a morte do livro à mão do e-book – um pouco como aconteceu com o vinil quando o CD apareceu -, tem a certeza de que “não vão acabar os livros”. Sobre os e-books, Nuno diz que estes são para ele e para os seus clientes “um universo paralelo muito distante”, afirmando que tem “leitores de clínica geral”. Esperemos que, no que toca às bibliotecas itinerantes e ao contrário da medicina, não sejam convocadas assim tantas greves. Para bem dos leitores.
Fotos de Rita Chantre.
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