No primeiro dia com mesas postas no LeV – Literatura em Viagem, o romance das cidades começou a ser desenhado em três diferentes geografias: Matosinhos, Rio de Janeiro e Nova Iorque.
A viagem a Matosinhos – numa mesa intitulada “Senhor de Matosinhos” – foi conduzida por Joel Cleto, licenciado em História, Mestre em Arqueologia e o guia mais famoso do Porto Canal, que deu a conhecer as variantes da lenda, numa conversa onde se falou de igrejas, de cavalos que caminhavam sobre as águas ou do restauro e da radiografia feita à imagem do Senhor de Matosinhos, que adensou ainda mais o mistério em volta do braço reconstruído. Joel Cleto apontou ainda as diferenças entre os cristos antigos, versão românica, pregados com quatro pregos e revelando um ar de “atletas olímpicos” – como no caso do Sr. de Matosinhos -, e os mais tardios góticos, que apresentavam um ar sofredor, cabisbaixo e muito sangrento.
“Her name is Rio and she dances on the sand /Just like that river twisting through a dusty land / And when she shines she really shows you all she can / Oh Rio, Rio dance across the Rio Grande”, cantavam os Duran Duran no ano de 1982, num tema escrito depois de a banda se ter perdido de amores pelo Rio de Janeiro. Uma cidade feita de contrastes, balas perdidas e múltiplas camadas, que foi desvendada na mesa “Cidade Maravilhosa – Rio de Janeiro”, que promoveu uma conversa entre a escritora Alexandra Lucas Coelho e o músico e poeta Mariano Marovatto, conduzida por Tito Couto que, desde logo, tratou de deixar os convidados à vontade servindo uma água de coco – vulgo cerveja – made in Leça do Balio.
Durante os anos em que viveu no Rio, Alexandra Lucas Coelho disse ter sentido “a carga histórica entre a culpa e a arrogância de 500 anos em cima”, uma vivência que acabou por ser facilitada com o facto de ter então já 40 anos e também por ter sido precedida por uma viagem ao México, que serviu para decidir que já era tempo de “abrir o baú de fantasmas transatlânticos“. Um momento em que sentiu que “já não era o jornalismo ou a reportagem, era outra coisa”, e que, entre outras coisas, acabou por ser registado no recomendado “Deus-dará” (Tinta da China, 2016). Um livro que, nas palavras da autora, promove “uma viagem entre o genesis e o apocalipse” a “uma cidade que vive uma emergência diária” e que faz dos cariocas uma espécie de “deuses andantes”.
Sobre o plano real vs ficcional, Mariano Marovatto introduziu a tão bem exportada telenovela brasileira, dizendo que “o que aparece não existe”, dando o exemplo de alguém que foi viver para a cidade durante a ditadura militar e que, no desapontado regresso a casa, terá dito qualquer coisa como isto: “Não quis morar no Rio, quis morar na música do Rio de Janeiro“.
Quanto à imagem de o Rio estar situado – ou, nas palavras de Tito Couto, “encravado” – entre a violência extrema e a classe média muito bem instalada na vida, Alexandra usou as palavras de Caetano, incluídas no tema “Tropicalia” – “Emite acordes dissonantes / Pelos cinco mil alto-falantes” -, para pintar esta cidade que vive “em convulsão permanente” e pela qual tem “um amor incondicional apesar e por tudo isso” – cidade que é, segundo ela, “a própria resistência“.
Questionado sobre o Rio ser uma cidade onde, como num puzzle mas desenhado, as peças têm de encaixar à força, Mariano realçou a expulsão da população pobre do centro da cidade, fazendo com que o Rio de hoje esteja dividido em duas grandes zonas: a zona sul, das novelas e das canções, e a zona norte, uma cidade abandonada. Um cenário inquietante que Marovatto descreveu trazendo de volta as palavras de Wilson das Neves, que já em 1996 escrevia isto: “O dia em que o morro descer e não for carnaval / ninguém vai ficar pra assistir o desfile final / na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu / vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil (é a guerra civil)”.
Em relação à imagem do Rio como uma cidade que vive uma espécie de turismo armado, Mariano recordou os tempos de juventude, onde “esperava o tiroteio acabar para ir no cinema“. Alexandra realçou, apesar das constantes mazelas da cidade e do país, o sistemático sentimento de esperança, apesar de “o mais difícil agora, para quem lá está, ser continuar a acreditar“.
Quanto ao Rio de cada um, foram apresentadas duas concepções bem distintas. “O meu Rio não é o Rio da praia, é o Rio do mato, de aparecer cobra no banheiro“, disse Alexandra, enquanto para Mariano “é o Rio da praia, onde você namora, conversa e arranja emprego“. Uma conversa que terminou com um brinde, feito com essa água de coco alternativa, às melhoras do Rio – e, por que não, do Brasil inteiro.
A mesa “A Cidade que não dorme – Nova Iorque”, moderada por Hélder Gomes, teve como participantes o escritor João Tordo e jornalista e escritora Isabel Lucas, que disse ter chegado a Nova Iorque “nesta coisa da vadiagem“, num momento em que esteve desempregada e quis estar num sítio onde se sentisse completamente anónima, referindo-se a Nova Iorque como “uma cidade construída por pessoas desesperadas”.
“Tive muitas ambições e sonhos que tive de deixar pelo caminho por me ter tornado adulto”, começo por dizer João Tordo antes de falar dos tempos em que viveu e trabalhou em Nova Iorque como empregado de bar e lavador de pratos, cometendo tantos disparates que acabou por instituir, junto de quem por lá trabalhava, a expressão “fazer um tordo”, aplicada sempre que alguém deixava cair um prato ou fazia uma asneira de nota. Uma experiência que acabou por ser exorcizada no livro “Hotel Memória”, reeditado este ano após se ter cumprido uma década desde o seu lançamento inicial: “Tinha vergonha da personagem que era“.
E se, para Tordo, o regresso anos mais tarde a Nova Iorque significou sentir pela primeira vez “o peso da idade”, numa cidade onde “se fores um tipo ingénuo ou pouco confiante és completamente engolido”, para Isabel Lucas trata-se de uma necessária “injecção de adrenalina”, numa cidade onde o anonimato representa, também, uma viagem de auto-descoberta e um elixir da juventude: “Não me sinto velha, sinto-me rejuvenescida“.
Em relação à ideia de ser uma cidade onde a loucura se passeia pelas ruas, onde há “gente a falar sozinha, a pregar, a querer roubar a alma ou a converter”, Tordo lembrou a loucura de Ahab em “Moby Dick”, referindo que “toda a literatura nasce de uma espécie de patologia“.
Isabel Lucas não deixou de referir a gentrificação que a cidade está a viver, “uma cidade que se transformou numa marca de luxo pela qual há muita gente disponível a pagar”. E, se “a América não é um país, é um continente”, “Nova Iorque é um sítio à parte” dentro desse mesmo continente, algo que poderá ser lido na brilhante “Viagem ao Sonho Americano”, livro onde Isabel Lucas leva o leitor numa viagem pela América partindo da sua literatura.
Ambos chegaram a Nova Iorque pelos filmes, mas a chegada à cidade suplanta qualquer projecção que dela possa ser feita. Quando olhou o ponto de fuga da cidade, numa avenida cercada por edifícios que eram como que gigantes, Tordo disse ter pensado que “não poderia ter sido o homem a construir aquilo”, naquela metrópole feita de “assombro e solidão” – ele que partilhou ter sido despedido de um trabalho que servia para ganhar uns trocos para o tabaco por ter sido constantemente apanhado a ler a “Trilogia de Nova Iorque”, de Paul Auster, que não conseguia pousar. Uma imagem de deslumbre partilhada por Isabel Lucas, que falou de “um organismo inacreditável, voraz, que suplanta o que o cinema e a literatura podem dar”.
O Lev – Literatura em Viagem encerra hoje com o seguinte programa:
Galeria Municipal de Matosinhos
Exposição «Acordo Fotográfico», de Sandra Barão Nobre
A exposição «Acordo Fotográfico» é um apanhado do trabalho do site com o mesmo nome, lançado em Dezembro de 2011, por Sandra Barão Nobre. Trata-se de um site sobre pessoas, livros e fotografias, que homenageia o ato de ler. No «Acordo Fotográfico» as imagens são indissociáveis dos textos que as acompanham. Juntos, fotografias e textos formam um bloco, uma unidade. As fotografias registam o momento; as palavras contextualizam as imagens e fornecem uma narrativa: quem é o leitor, o que lê, onde e porquê.
Biblioteca Municipal Florbela Espanca
Exposição «Raízes», de Maria Beatitude
A exposição «Raízes», de Maria Beatitude, apresenta um conjunto de pinturas e uma instalação artística num tributo às mulheres da sua família, à ligação à terra e às memórias do passado.
13 Maio | 15h00 | Galeria Municipal de Matosinhos
Mesa – “A Cidade Luz — Paris”
Foi porto de abrigo para milhares de portugueses durante a ditadura, entre eles muitos músicos e escritores. Qual é o encanto e a relação com as artes desta cidade? E por que razão há tão pouca literatura sobre os portugueses que foram viver para os seus subúrbios?
Convidados: Enric González e Tânia Ganho
Moderação: Maria João Costa
Nota : Sessão em línguas espanhola e portuguesa, com tradução em simultâneo.
13 Maio | 15h45 | Biblioteca Municipal Florbela Espanca
Visita guiada à exposição “Raízes”, com presença da autora
Convidada: Maria Beatitude
13 Maio | Galeria Municipal de Matosinhos
16h00 – Entrevista de Vida: Jonathan Coe
Vencedor do prémio Médicis e jurado do Man Booker Prize, Jonathan Coe é um dos autores ingleses que melhor mescla literatura e política. Com uma abordagem satírica e engajada, Coe é uma voz fundamental para melhor compreender o Reino Unido dos últimos 40 anos, das tensões do thatcherismo ao advento do Brexit.
Convidado: Jonathan Coe
Moderação: Hélder Gomes e Tito Couto
Nota: sessão em língua inglesa, com tradução simultânea.
17h00 – Mesa: “As cidades literárias”
Haverá cidades mais literárias do que outras? Paris, Roma ou Nova Iorque são mais apelativas para os ficcionistas porquê? Serão as cidades a convocar a literatura ou os escritores a transformá-las em espaços literários?
Convidados: Francisco José Viegas e Sjón
Moderação: Filipa Melo
Nota: sessão em língua inglesa, com tradução simultânea.
18h00 – Mesa: “A Cidade Santa — Jerusalém”
É o espaço mais cobiçado do mundo, palco de guerras e disputas seculares. O qu e tem Jerusalém de tão especial para alimentar tanto conflito? Para lá das questões religiosas e políticas, o que fica por ver?
Convidados: Miguel Miranda, Paulo Moura e Sheikh David Munir
Moderação: Tito Couto
Fotos cedidas ao Deus Me Livro pela organização do LeV – Literatura em Viagem.
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