Em 2016, Pacheco Pereira falou da viagem como algo de essencial para a construção europeia levada a cabo pela literatura, tenha sido ela conduzida pelos argonautas, tomada pela Odisseia de Ulisses ou acompanhado Dante numa descida aos círculos do Inferno. Uma viagem que, ao defrontar os deuses, recusar as limitações e abraçar o conhecimento, funcionou sempre como a metáfora da própria vida.
Em 2017, Carlos Fiolhais viajou pelas ondas gravitacionais para nos trazer uma versão mais humana de um deus da ciência, que terá ajudado gente como Picasso e Proust a criar universos artísticos paralelos – ou mesmo levado Mariah Carrey a dar o título da mais célebre fórmula conhecida a um dos seus discos, provando uma vez mais que não se deve julgar – e comprar – um disco pela capa. Nem mesmo um cientista.
Este ano, e apesar de Mariah Carrey não ter sido vista em Matosinhos, a música fez-se de novo ouvir, cabendo ao músico Pedro Abrunhosa abrir a 12ª edição do LeV – Literatura em Viagem – festival literário organizado pelo município de Matosinhos -, para falar sobre alguns dos livros que o marcaram e, sobretudo, das muitas viagens que fez – ele que, com os Bandemónio, lançou o melhor disco de toda a sua discografia, intitulado precisamente “Viagens”.
Depois de agradecer às entidades presentes mas sobretudo aos leitores, Abrunhosa começou por dizer que o fascínio da viagem, tal como o fascínio da literatura, vem daquilo que não se conhece ainda. Recordou a viagem que fez com 13 anos – estávamos em 1974 -a Lausanne, na Suiça, para ver um tio, “num tempo em que éramos ainda um país negro, nem sempre bem-vindo nas fronteiras”, uma experiência que o levou a viajar todos os anos, quase sempre sozinho, numa descoberta de mundos que disse ter sido essencial para a sua auto-estima – e para perceber que “o mundo é um lugar diferente e desigual”.
Uma introdução que serviu para lançar os temas do medo e do racismo, que atravessaram depois todo o seu discurso, onde fez uma ligação da postura pouco democrática de muitos à ausência da viagem, dessa permanente busca pela inquietação e da descoberta do outro.
Recordando a sua visita a Auschwitz, disse estarmos a assistir à “tomada de poder por criaturas sinistras”, e que hoje em dia a culpabilização está a ser feita sobre os emigrantes, cabendo à alta cultura, às elites e a cada um de forma individual falar e discutir estas questões: o racismo, as perseguições, a cultura do ódio.
“A literatura continua a ser para mim a grande esperança da salvação”, continuou antes de falar de cada uma das cidades que estarão em destaque na edição deste ano: sobre Jerusalém realçou uma estratificação que começa a ser feita a partir do subsolo, tecendo um elogio a Paulo Moura – “uma testemunha imperdível” – e ao seu livro “Depois do Fim”, numa cidade que disse viver em permanente reconquista, destruição e reconstrução; de Nova Iorque falou-se de Salman Rushdie e de verdades e mentiras dissimuladas; de Paris abriram-se as páginas de “Les Nuits de Paris”, de Rétif de La Bretonne, “um tratado sociológico e histórico” por onde se passeiam seres violentados, almas perdidas, suicidas, poetas, escritores e artistas; do Rio de Janeiro – e do Brasil – destacaram-se Cazuza, Chico Buarque e também Carlos Drummond de Andrade, de quem Abrunhosa recordou a citação “Escrevo poesia para que as pessoas tropecem, não para as embalar”. Houve ainda tempo para uma gaffe, nomeadamente referir-se a Bob Dylan – “um dos maiores poetas contemporâneos” – como o Nobel de 2017 e 2018 na ausência de um vencedor este ano. Mesmo esquecido por todos, Kazuo Ishiguro – autor, por exemplo, do magistral “Gigante Enterrado” – levou o prémio para casa em 2017, Dylan ganhou a taça em 2016; de Matosinhos destacou a sua arquitectura, “uma das assinaturas nacionais”, realçando “o respeito pelo património edificado e natural” e o investimento na cultura que considerou “comovedor”.
Terminando com o mantra “viajar e ler são a mesma coisa”, Pedro Abrunhosa anunciou que terá disco novo em Outubro e, com Eurico Amorim ao piano – a quem havia ligado nessa tarde a dizer “há um piano na sala e acham que eu vou tocar” -, ofereceu um medley com um toque de rap e de beatbox que incluiu “É preciso ter calma” e “Para os braços da minha mãe”, tema que gravou com Camané e que teve direito a um coro de vozes e muitos telemóveis ao alto.
Fotos cedidas pela organização do LeV.
O LeV prossegue em Matosinhos até Domingo com a seguinte programação:
10 a 13 Maio | Galeria Municipal de Matosinhos
Exposição «Acordo Fotográfico», de Sandra Barão Nobre
A exposição «Acordo Fotográfico» é um apanhado do trabalho do site com o mesmo nome, lançado em Dezembro de 2011, por Sandra Barão Nobre. Trata-se de um site sobre pessoas, livros e fotografias, que homenageia o ato de ler. No «Acordo Fotográfico» as imagens são indissociáveis dos textos que as acompanham. Juntos, fotografias e textos formam um bloco, uma unidade. As fotografias registam o momento; as palavras contextualizam as imagens e fornecem uma narrativa: quem é o leitor, o que lê, onde e porquê.
10 a 13 Maio | Biblioteca Municipal Florbela Espanca
Exposição «Raízes», de Maria Beatitude
A exposição «Raízes», de Maria Beatitude, apresenta um conjunto de pinturas e uma instalação artística num tributo às mulheres da sua família, à ligação à terra e às memórias do passado.
7 a 11 Maio | Escolas do Concelho
LeVzinho
Os escritores convidados pelo LeV visitam as escolas do concelho de Matosinhos, com vista ao envolvimento dos mais novos na promoção da leitura.
Convidados : Olinda Beja, Patrícia Müller e Richard Zimler
11 Maio | 21h30 | Salão Nobre da Câmara Municipal de Matosinhos
Conferência inaugural
Convidado: Pedro Abrunhosa
12 Maio | 15h00 | Galeria Municipal de Matosinhos
Apresentação do livro “Nómada”
Convidados: João Luís Barreto Guimarães e Pedro Abrunhosa
Moderação: Francisco José Viegas
12 Maio | 15h45 | Biblioteca Municipal Florbela Espanca
Visita guiada à exposição “Raízes”, com a presença da autora
Convidada: Maria Beatitude
12 Maio | Galeria Municipal de Matosinhos
16h00 – Mesa: “Senhor de Matosinhos”
Os homens e as mulheres que construíram Matosinhos. Uma viagem no tempo, com os protagonistas da cidade do mar.
Convidado: Joel Cleto
Moderação: Tito Couto
17h00 – Mesa: “Cidade Maravilhosa — Rio de Janeiro”
O Rio de Janeiro continua lindo ou a realidade acabou por encurralar a beleza da cidade na ficção, na poesia ou na televisão? Que Rio de Janeiro é este: o da violência ou o da Baía da Guanabara?
Convidadas: Adriana Calcanhotto e Alexandra Lucas Coelho
Moderação: Tito Couto
18h00 – Mesa: “A Cidade que não dorme — Nova Iorque”
Nova Iorque é a cidade que mais gente conhece sem nunca lá ter ido. A sua presença no cinema faz dela um espaço verdadeiramente global. E como será na literatura?
Convidados: Isabel Lucas e João Tordo
Moderação: Hélder Gomes
12 Maio | 21h30 | Sr. de Matosinhos
Visita dos autores do LeV à Festa do Senhor de Matosinhos
12 Maio | 22h00 |Igreja do Bom Jesus de Matosinhos
Poesia Mal_dita
Sessão inusitada e súbita de poesia, por Isaque Ferreira e João Rios, na Romaria do Senhor de Matosinhos.
Convidados: Isaque Ferreira e João Rios
13 Maio | 11h00 | Biblioteca Municipal Florbela Espanca
Oficina de Escrita Criativa, com Filipa Melo
Com uma abordagem teórico-prática, esta oficina pretende dar a conhecer as principais técnicas, os elementos básicos e as convenções mais relevantes na criação de textos de literatura de viagem.
Inscrições: bmfe@cm-matosinhos.pt
Organizado em cooperação com o projeto CELA — Connecting Emerging Literary Artists, apoiado pelo programa Europa Criativa da União Europeia.
13 Maio | 15h00 | Galeria Municipal de Matosinhos
Mesa – “A Cidade Luz — Paris”
Foi porto de abrigo para milhares de portugueses durante a ditadura, entre eles muitos músicos e escritores. Qual é o encanto e a relação com as artes desta cidade? E por que razão há tão pouca literatura sobre os portugueses que foram viver para os seus subúrbios?
Convidados: Enric González e Tânia Ganho
Moderação: Maria João Costa
Nota : Sessão em línguas espanhola e portuguesa, com tradução em simultâneo.
13 Maio | 15h45 | Biblioteca Municipal Florbela Espanca
Visita guiada à exposição “Raízes”, com presença da autora
Convidada: Maria Beatitude
13 Maio | Galeria Municipal de Matosinhos
16h00 – Entrevista de Vida: Jonathan Coe
Vencedor do prémio Médicis e jurado do Man Booker Prize, Jonathan Coe é um dos autores ingleses que melhor mescla literatura e política. Com uma abordagem satírica e engajada, Coe é uma voz fundamental para melhor compreender o Reino Unido dos últimos 40 anos, das tensões do thatcherismo ao advento do Brexit.
Convidado: Jonathan Coe
Moderação: Hélder Gomes e Tito Couto
Nota: sessão em língua inglesa, com tradução simultânea.
17h00 – Mesa: “As cidades literárias”
Haverá cidades mais literárias do que outras? Paris, Roma ou Nova Iorque são mais apelativas para os ficcionistas porquê? Serão as cidades a convocar a literatura ou os escritores a transformá-las em espaços literários?
Convidados: Francisco José Viegas e Sjón
Moderação: Filipa Melo
Nota: sessão em língua inglesa, com tradução simultânea.
18h00 – Mesa: “A Cidade Santa — Jerusalém”
É o espaço mais cobiçado do mundo, palco de guerras e disputas seculares. O qu e tem Jerusalém de tão especial para alimentar tanto conflito? Para lá das questões religiosas e políticas, o que fica por ver?
Convidados: Miguel Miranda, Paulo Moura e Sheikh David Munir
Moderação: Tito Couto
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