O aclamado Martin Amis volta a ser publicado pela Quetzal, agora com o romance “Outras Pessoas” (Quetzal, 2018). O livro data de 1981 mas mantém um traço de actualidade, essencialmente pelo tom cáustico e satírico que Amis usa e abusa para criticar a sociedade, analisando flagelos e vícios que são intemporais e transversais.
“A pele deles era flácida e luzidia, mas todos os olhos eram gelo. Sou um deles, pensou, talvez tenha sido sempre. (…) Estas pessoas eram vadios, afinal. Vocês sabem a que tipo de gente me refiro. A razão de serem vadios é não terem dinheiro. A razão de não terem dinheiro é não venderem nada (…) Os vadios simplesmente não querem vender (…) não querem simplesmente vender o seu tempo. (…) Vender tempo, tempo vendido: é o negócio a que todos nos dedicamos. (…) Ser vadio é cada vez mais popular, mostram as estatísticas.”
É interessante esta sua teoria sobre ser vadio e não vender o seu tempo a qualquer preço ou a qualquer um, e o quanto isso pode alterar as expectativas para com os outros – já que, esses outros, olharão de forma desigual e marginal. Essa marginalidade está também aqui presente na vida fragmentada, em espiral e destrutiva de Amy/Mary, deixando o leitor expectante com o futuro da personagem, sabendo ele que o passado foi ainda mais fervilhante e vacilante. No entanto, a sequência de episódios e de personagens parece nunca querer contribuir para essa compreensão.
“Não censuro ninguém por ser assim. A minha teoria é que qualquer pessoa seria um bêbado se se aguentasse nesse estado.”
E, talvez, seja nesse estado ébrio que Amis quer deixar o leitor: a narrativa avança com episódios aos soluços, diálogo regados a álcool e a outros alucinogénos e tudo em modo descompassado, desmazelado e fragmentado; como a cabeça de Mary e as vidas daqueles com quem se cruza.
“A linha da fissura é onde eu caminho, ou onde por vezes penso que caminho. Na fissura ouve-se coisas prestes a quebrar, o chão, os muros de ar, o céu impermeável. Outras pessoas caminham por ela mas eu não as vejo. (…) Não se cruzam linhas, não surgem figuras, tudo está sozinho na linha de fissura.”
São esses muros de ar invisíveis e intransponíveis que pairam sobre a cabeça de Mary, fazem-na navegar num mundo paralelo aquele em que se desenrola a realidade.
“Queria ser boa e não acreditava que Amy pudesse ter sido de todo má se Mary de algum modo provinha dela. Talvez toda a rapariga fosse na verdade duas raparigas. (…) Ao desviar-se do espelho viu o fantasma de um sorriso vindo do génio sabedor que vivia por trás do vidro. A imagem tremeu: havia ali caos algures.”
O caos persegue esta narrativa e, quanto ao leitor, ou se vicia nele e abraça a vastidão, experimentando a liberdade de o interpretar como quer, ou se perde no nó que embrulha episódios e personagens, seguindo sem saber para onde vai. Uma coisa é garantida: o tédio não mora aqui e o melhor de Amis são algumas descrições e a forma brilhante de, em poucas palavras, caracterizar uma personagem.
“Mary afastou-se dele. Aqueles olhos aterrorizavam-na: sabiam demais. Eram de um verde feminino, estreitos e estranhamente encurvados nos cantos exteriores. Em vez de luz, continham apenas um clarão amarelo, um mau amarelo, o amarelo da urina e da febre. Ou eram apenas os olhos da lei, pensou ela, os olhos da autoridade e da mudança?“
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