Primo Levi dedicou a sua vida pós Holocausto à sobrevivência da memória e à reposição da integridade: a sua e a de todos que viram a sua personalidade aniquilada e a existência interrompida pela barbárie. Sobreviveu e escreveu. Fê-lo num registo memorialista, com rigorosa objectividade sobre a sua experiência como prisioneiro em Auschwitz e a luta pela sobrevivência em “Se Isto é Homem” e, em “A Trégua”, já como sobrevivente, depois de dois anos de permanência no lager nazi, dando expressão à procura de uma nova vontade de viver depois da experiência de horror e miséria. Continuou a luta contra o branqueamento dos factos e a aniquilação da memória, relatando e reflectindo sobre a sua experiência, em múltiplos textos e intervenções.
Em 1986, um ano antes do seu suicídio, escreveu “Os que Sucumbem e os que se Salvam”(D. Quixote, 2018). Entre outros desideratos, Levi quis claramente contrariar a convicção das SS de que, finda a guerra, não existiriam testemunhos credíveis para sustentar suspeitas, discussões, investigações ou julgamentos. A ideia era destruir as provas, juntamente com as vítimas.
Os factos relatados e as memórias activadas por Primo Levi em “Os Que Sucumbem e os Que Se Salvam” tocam aspectos sensíveis, como a ignorância – ou a falta dela -, por parte do povo alemão em geral e dos elementos do aparelho nazi, relativamente ao detalhe das atrocidades praticadas. Na perspectiva do autor, fica a convicção de que as dúvidas, a terem existido, foram sufocadas pelo medo, pelo desejo de lucro e por uma oportuna “cegueira” ou ignorância colectiva.
Convicto de que a reconstrução da verdade tem que ser em primeira linha, constituída pelas memórias dos sobreviventes, Levi considera que “a verdade sobre os campos de extermínio veio à luz do dia através de caminho longo e por uma porta estreita, e muitos aspectos do universo concentracionário ainda estão por aprofundar”, em processos de decantação e estilização ditados por uma observação paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão. Um processo necessariamente doloroso porque traumático ou pelo menos incómodo – “quem é ferido tende a realçar a lembrança para não renovar a dor; quem feriu mergulha essa lembrança bom no fundo, para se livrar dela, para atenuar o seu sentimento de culpa”.
Nesta sua última obra, Primo Levi demonstra como o interior dos campos era um microcosmos intrincado e estratificado, responsável pela sobrevivência ou o sucumbir de quem o integrava. Desbrava motivações e justificações para a acção de quem dominava, para a complacência de quem observava e para as alianças de quem procurava sobreviver. Constatou que a ameaça ou o inimigo estava não só em torno como também dentro dos próprios prisioneiros que assumiam comportamentos primitivos, de regressão. Insere neste âmbito os prisioneiros privilegiados ou prisioneiros-funcionários, um inimigo novo e estranho dominado pelo terror, engodo ideológico, imitação servil, desejo de poder ou cobardia, constatando que quanto mais longa e dura a opressão, maior a probabilidade das vítimas se disponibilizarem para colaborar com quem tem poder.
“Imagine, se puder, que passou meses ou anos num gueto, atormentado pela fome crónica, pela fadiga, pela promiscuidade e pela humilhação; que viu morrer à sua volta, um a um, os seres que lhe eram mais queridos; que foi excluído do mundo, sem poder receber notícias; enfim, que foi metido num comboio com oitenta ou cem pessoas em cada vagão de mercadorias; que viajou para o desconhecido, às cegas, durante dias e noites insones; e que finalmente deu consigo atirado para dentro das paredes de um inferno indecifrável. Aqui é-lhe oferecida sobrevivência, e é-lhe proposta, ou melhor, imposta, uma tarefa cruenta mas indefinida.” O que fazia?
Aprendemos alguma coisa? “O que pode fazer cada um de nós, para que, neste mundo prenhe de ameaças, pelo menos esta ameaça seja eliminada?” Preocupa-o, e preocupa-nos, o risco de construção de uma verdade cómoda, distanciada dos acontecimentos que permita edificar um relato confortável e uma vida em paz, de complacência e manipulação da lembrança.