Adeus adolescência, gritou-se em surdina na Póvoa de Varzim entre os dias 20 e 24 de Fevereiro. Afinal ficam para trás 19 anos de Correntes d’Escritas, o festival literário mais familiar – e um dos mais antigos – cá do burgo, que tem levado à Póvoa alguns dos mais importantes autores nacionais e internacionais – estes últimos saídos do universo latino-americano.
Quem nestes dias passeasse pelas ruas da Póvoa, para além de ter de provar as obrigatórias rabanadas ou percorrer o bonito passadiço junto ao mar, poderia pisar um sem-número de tapetes vermelhos, colocados à entrada das lojas que se associaram à iniciativa “Hoje a minha loja é uma livraria”, que desafiava os comerciantes a criar uma pequena livraria dentro do seu espaço. Algo que ilustra bem o envolvimento permanente da cidade que, uma vez mais, compareceu em peso às mesas literárias, onde em algumas delas era difícil descobrir uma cadeira vazia no Cine-Teatro Garrett.
Por entre entrevistas – em breve publicaremos entrevistas a Afonso Cruz, sobre “Jalan Jalan”, livro nacional de 2017 para o Deus Me Livro, e a Alicia Kopf, autora de “Irmão de Gelo”, um dos mais desafiantes livros publicados este ano entre nós – assistimos a algumas mesas, sempre com temas crípticos que deixam, ainda assim, margem para pequenos desvios. Ou grandes, havendo quem aproveitasse para mandar o título às urtigas trocando-o por um momento de descarada auto-promoção.
Ficaram na memória as intervenções de João Tordo e de Sandro William Junqueira, ambas numa mesa que tinha como frase referencial “O que escrevo atormenta quem sou“. Tordo fez da gaguez uma arma – “não o tentem apressar porque ele não é domesticável” -, falando das três dimensões que lhe possibilitaram a escrita: uma diferente perspectiva do tempo, que lhe atribuiu um muito particular relógio emocional da escrita; o medo de falhar; e a aceitação da gaguez, partindo dessa vulnerabilidade para escrever os seus romances, sempre numa “tentativa de ordenar o caos no formato da linha“. Tordo partilhou ainda algumas imagens de textos e bandas-desenhadas suas enquanto criança, mostrando como personagens como o Gato do Espaço ou o Super-Amendoim eram já tentativas de compreender e organizar o mundo, acabando por incluí-lo na ordem de “solitários, bêbados, aldrabões e pelintras, portanto, escritores“.
Quanto a Junqueira, relacionou a escrita e o acto criativo com os fantasmas de cada um, contando, ao estilo de fábulas, episódios decisivos de quatro vidas: o momento em que Mark King vendeu uma mesa de snooker por 1000 libras, dinheiro que perdeu duas horas depois numa mesa de blackjack, para uma dúzia de anos depois voltar em grande: “Nunca tinha visto um homem tão alto chorar“, afirmou Junqueira; Leoš Janáček que, a partir de um abalroamento amoroso num café, compôs uma das mais sentidas óperas de sempre, deixando para trás o sonho de ser guarda-florestal; Paul Thomas Anderson, que depois do sucesso estrondoso de “Boogie Nights” se refugiou numa casa de campo algures a sul da Califórnia, numa procrastinação que só terminou quando se viu diante de uma piton birmanesa, que o confrontava no alpendre. Fechou a porta, ligou todas as luzes e escreveu de um só fôlego o guião de “Magnolia”; e também Billie Collins, que escreveu um poema para um amigo desaparecido que continuava a procurar na página dos horóscopos, e que resultou num poema intitulado “Horóscopo para Mortos”. Também Junqueira acabou por reunir todas estas histórias e, retirando de cada uma delas um sentimento, homenageou um amigo que partiu mais cedo. Uma intervenção que aliou o academismo ao sentimento e que foi, daquilo que vimos, o momento maior destas Correntes.
Espreitámos também a mesa que tentava descortinar se o politicamente correcto seria uma nova forma de censura: Daniel Mundruku defendeu que “o correcto tem de ser apenas correcto“; Isabel Lucas preferiu colocar um ponto de interrogação no título da mesa, defendendo que na arte e na literatura não deverá ser procurada qualquer literalidade; a palavra censura acordou em Mário Zambujal todos os bichinhos do jornalista, fazendo-o optar pela máxima dos anarquistas: hay govierno? Soy contra. Rodrigues Guedes de Carvalho foi directo ao assunto referindo que “o politicamente correcto é muito estúpido“, enquanto Rui Zink disse que “estaríamos melhor com escritores mais críticos e críticos mais criativos“, acrescentando ainda que “a grande ditadura continua a ser a do politicamente incorrecto“.
Muito interessante foi também a intervenção de Bruno Vieira Amaral, na mesa subordinada ao devaneio “Escrevo para não salvar o mundo“, num relato em jeito de fábula sobre um fim do mundo falhado onde se referiu também alguns “biógrafos do apocalipse” como Sebald. Quanto ao prémio para a melhor T-Shirt, esse foi sem dúvida para Kalaf Epalanga com “Feminist”.
No próximo ano, as Correntes chegam ao fim da adolescência e entram na idade adulta, numa 20ª edição que poderá trazer novidades para que a festa seja ainda maior. Por aqui gostaríamos que o formato das mesas se alterasse, permitindo mais diálogo entre os escritores e uma maior participação do moderador, trocando os discursos ensaiados – e nem sempre bem lidos – por uma conversa em tempo real e sem rede.
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