“Um dos momentos mais difíceis no dia de um aluno novo é quando tem de arranjar um lugar no refeitório. O ambiente é desenfreado e caótico, e, como não há lugares marcados, todos se sentam com os amigos. Mas um aluno novo ainda não tem amigo, pelo que nenhum lugar é óbvio para ele.”
Não há ambiente tão fascinante e, por outro lado, tão temível como o recreio de uma escola. Na literatura, este espaço sempre foi retratado com hierarquias. Pequenos ditadores aparecem – os chamados bullies, de uma designação proveniente do estrangeirismo –, com um passado usualmente marcado por tristeza ou violência na família, para aterrorizarem os restantes elementos da escola. Num outro canto aparecem os heróis, populares entre os demais por motivos que são desconhecidos ao leitor. No fundo da hierarquia estão os novos alunos: miúdos que chegam a meio do ano lectivo para fazerem parte de um ambiente com grupos pré-estabelecidos para trabalhos, almoço ou recreios e amizades construídas. “O Novo Aluno” (Bertrand Editora, 2017) retrata as relações de violência e de amor que se podem estabelecer com a chegada de um novo elemento ao recreio de uma escola, em que pouco ou nada acontece e ele se transforma no centro das atenções.
Nos anos 70, Osei Kokote chega a uma nova escola quase no final do ano lectivo. É a quarta em seis anos devido às mudanças da família, provocadas pela profissão do pai. Entrar num ambiente novo, em que os alunos são avessos à mudança, não é novidade para Osei: sabe que precisa de ter aliados se quer ter um mês de aulas sem qualquer tipo de problema. Se ser aluno novo já é um problema, há um pormenor em Osei que dificulta ainda mais a sua entrada: é o único rapaz negro no meio de tantos brancos. Num ambiente em que os miúdos se apaixonam e desapaixonam à velocidade da luz, Tracy Chevalier retrata o racismo – manifestado desde tenra idade, proveniente de casa e da cultura perpetuada na América – tal como a intensidade do amor e das amizades.
Não há época tão marcante como a infância, em que traumas podem ser facilmente plantados e há alegrias que nunca mais são esquecidas. Osei acaba por se apaixonar por Dee, uma das raparigas da sua turma que está constantemente disposta a ajudar e interessada no passado e nas opiniões do jovem. Esta rapariga é o verdadeiro retrato da inocência na infância. A diferença do novo aluno acaba por ser um íman de atracção, em que Dee é a única que vê com bons olhos a entrada deste miúdo na sua turma.
Mas a quebra das regras nesta hierarquia não é vista da mesma forma por todos os elementos da hierarquia: Ian, colega de turma destas duas personagens, deixa-se consumir pela inveja, e o seu único objectivo é destruir a relação dos dois. É o retrato da maldade, em que só obtém satisfação ao sentir a desgraça alheia. O plano é engendrado e acaba por envolver outros elementos da turma, para um desfecho trágico. É, neste sentido, uma réplica da tragédia característica em Shakespeare. Algum destes miúdos conseguirá conservar a inocência?
Neste “O Novo Aluno” reflecte-se sobre o preconceito e sobre a bondade do ser humano. Do simples ambiente da escola, fica uma intensidade característica aos bons romances: aqueles que infectam os leitores com questões, reflexões e dúvidas. Será que o racismo ainda é intensamente sentido entre os mais novos? Todos os que são diferentes continuam a sofrer a violência dos outros olhares?
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“O Novo Aluno” é uma recriação do Otelo de Shakespeare, e faz parte da colecção Bertrand Shakespeare, onde escritores contemporâneos são convidados a revisitar a obra do poeta, dramaturgo e actor inglês. Para além do livro de Tracy Chevalier estão também disponíveis “Shylock é o meu nome”, de Howard Jacobson – a partir de “O Mercador de Veneza” -, “Amarga como Vinagre”, de Anne Tyler – a partir de “A Fera Amansada” – e “Semente de Bruxa”, de Margaret Atwood – a partir de “A Tempestade”.
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