Dez anos se passaram entre a publicação de “A Catedral do Mar” e a sua sequela, “Os Herdeiros da Terra” (Suma de Letras, 2017), livro onde os personagens são mortos logo nas primeiras linhas. O leitor, desavindo, pára a leitura e questiona-se. Vai ler umas entrevistas e percebe que o autor se justifica dizendo que a história continua, aquela história com “H” grande – a História da cidade de Barcelona. O leitor apazigua-se mas, ainda assim, olha para as quase 900 páginas sem ainda saber que vai tirar um curso em vinicultura. É isso mesmo: “Os Herdeiros da Terra” são um tratado sobre o vinho e a vinha, numa cidade situada entre a terra e o mar.
“Em Fevereiro recebeu o vinho que encomendara a Jofré: dois odres enormes de um clarete de péssima qualidade. (…) O cheiro, o sabor e mesmo a vista, quando se tratava de confirmar se ainda existia alguma coisa de chama azulada, indicava-lhe os tempos da destilação. (…) só tinha misturado vido com aqua vitae em proporções ínfimas para fins medicinais: aquela dose equivalente a uma casca de avelã que os médicos prescreviam. Os vinhos como o clarete de Jofré adquiriam força misturados com outros mais fortes ou, tal como Mahir lhe contara, acrescentando ao mostro durante a fermentação o resultado da cocção de vinhos de melhor qualidade.”
Vamos conhecendo novas personagens e acompanhando Barcelona e as suas valências como eixo de um reino, sob vários reinados, entrecortados entre conspirações, morte, clero e a evolução fervilhante da época, nomeadamente da Medicina, também bastante abordada neste livro. Há um cruzamento bastante interessante e que se torna, ele mesmo, um personagem de características peculiares: os terrenos vinícolas dentro dos limites dos hospitais. A importância do vinho relata a importância da terra numa cidade virada para o mar, como Barcelona. Numa entrevista, Ildefonso Falcones sublinhou o valor essencial do vinho em séculos como o XIV e XV.
“Temos de perceber que naquela época era um bem de primeira necessidade. (…) As pessoas bebiam vinho. Os doentes eram tratados com vinho, as crianças eram criadas com vinho, aos soldados era obrigatório dar-lhes vinho. Quem podia tinha uma adega em casa e fazia o seu próprio vinho, por isso o vinho era um bem de primeiríssima necessidade.”
Essa centralidade está sempre presente no vinho – aliás, é ele a figura central no ódio renascido aos Puig. Nesta trama é Hugo Llor o cabecilha da lealdade e da traição, da vingança e do amor, da dor e da justiça. Os mesmos ingredientes que fizeram de “A Catedral do Mar” um livro de sucesso. Ainda assim, um aviso ao leitor: ler os dois livros de uma assentada talvez não seja a melhor estratégia. Se, por um lado reencontramos um modelo de escrita semelhante no qual o leitor se poderá sentir já em casa, o mesmo modelo poderá ser também cansativo, pela quantidade de páginas que cada livro tem e a inevitável repetição de algumas cenas.
“Os Herdeiros da Terra” brindam o leitor com um elenco vastíssimo de personagens aventureiras, apaixonantes, curiosas e até detestáveis, oferecendo inúmeros detalhes históricos de batalhas, sucessões de poder, intriga clerical e, claro, o peso do dinheiro que move pessoas e muralhas. Quanto às inúmeras mulheres que percorrem estas páginas, dão outro charme a toda a narrativa, adensando ainda mais os motivos que justificam traições e guerra, violência e tortura e toda a paixão que atropela os factos históricos.
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