Muitas vezes, os leitores são acusados de julgarem os livros pela capa, deixando-se levar por estímulos que pouco terão a ver com o que se esconde lá dentro. No caso de “Contos argentinos” (Editorial Presença, 2014), pode dizer-se que só a capa valerá a sua compra, assim como todos os volumes – até agora dezassete – da colecção de literatura fantástica A Biblioteca de Babel, editada pela Presença desde 2007.
A história remonta ao final dos anos (19)70, quando o editor argentino Franco Maria Ricci passou alguns dias em Buenos Aires na companhia do grande Jorge Luis Borges, convidando este a dirigir uma colecção de obras fantásticas que, seguindo o ADN Borgiano, se veio a chamar A Biblioteca de Babel.
Na altura – e ainda hoje – a colecção representou um modelo de arte tipográfica e de requinte bibliográfico, tendo sido publicados trinta e três volumes de obras seleccionadas e prefaciadas por este ilustre escritor.
Nesta edição da Editorial Presença mantiveram-se as capas de origem e os prefácios de Borges que, diga-se em boa verdade, são pérolas da arte de dizer muito com muito pouco, conseguindo em escassos parágrafos resumir um conto, apresentar um autor ou contar um facto relevante – ou apenas curioso – da história da literatura.
“Contos Argentinos” inclui nove contos de autores argentinos, apontados ao período renovador em que o Modernismo – finais do século XIX, inícios do século XX – operou uma renovação nas diversas literaturas da vasta língua espanhola – sobretudo no verso.
Yzur – Leopoldo Lugones (1874-1938) – conta a história de um homem que tenta, durante anos, ensinar um macaco – neste caso um jovem chimpanzé – a falar, convencido de que estes não falam apenas para evitar o trabalho. Para Borges, Lugones exigia que «o narrador fosse um homem da ciência», notando que «a página final tanto pode ser realista como alucinatória.»
O choco opta pela tinta – Adolfo Bioy Casares (1914-1999) – situa o leitor numa vila que, apesar de ter uma história capaz de encher algumas páginas de uma enciclopédia, teve nos dias em que decorre a narrativa motivos para muito falatório. O narrador é um docente e jornalista, e tudo começa com o desaparecimento – ou roubo – de um aspersor que, como um relógio suiço, cuidava religiosamente do jardim de Don Juan. Segundo Borges, «não é apenas um conto fantástico, mas também uma alegação contra a estupidez e a cobardia.»
O destino é canhestro – Arturo Cancela (1892-1957) e Pilar de Lusarreta (1914-1967) -conta a história de um guarda-freio que, graças à pressa e ao desmazelo de um médico, ficou com a perna direita encurtada em 4cm. Ao mesmo tempo que recorda uma cidade que já não existe, invadida pelo inevitável progresso, este conto é para Borges «essencialmente um jogo com o tempo.»
Casa ocupada – Julio Cortázar (1914-1984) – é um conto fascinante e de certa forma tenebroso, onde dois irmãos vivem um incesto ocioso numa casa de família, ocupada aos poucos por seres invisíveis. Qualquer coisa como uma alegoria sobre a fuga, a – palavras de Borges – «gradual intromissão do mundo fantástico neste outro mundo a que, por uma convenção já gasta, chamamos mundo real.»
A diligência – Manuel Musica Láinez (1910-1984) – percorre as sinuosas e poeirentas estradas entre Córdova e Buenos Aires, onde Catalina Vargas viaja com uma fortuna escondida debaixo das saias. Uma história de vingança com um final singular onde – do prefácio – «tudo é trabalhoso, tortuoso, poeirento e desconcertado.»
Os objetos – Silvina Ocampo (1906-1993) – é um conto intrigante onde Camila Ersky, que mantém com o mundo uma relação quase imaterial, vê de repente regressar os objectos perdidos que durante muito tempo tinham habitado apenas a sua memória. Um conto que, segundo Borges, revela uma «imaginação muito pessoal, um minucioso estilo visual e uma espécie de delicada aceitação da crueldade humana e da desventura.»
O professor de xadrez – Federico Peltzer (1924-2009) – apresenta, através de um tabuleiro de xadrez, um dos ensinamentos de Deus: não é bom fiarmo-nos em demasia. Borges considera que existe aqui «a singular virtude de se poder ter passado em qualquer lugar e em qualquer século.»
Em Pode ter-me acontecido – Manuel Peyrou (1902-1973) – há lugares que se atravessam no caminho do leitor, obrigando-o a recordar. Nele, lê-se no prefácio, «o ontem e o hoje confundem-se.»
O eleito – Maria Esther Vásquez (n. 1937) – serve-nos a melancolia em ponto de rebuçado, recriando a história de Lázaro, primeiro eleito e depois esquecido. Para Borges este conto mostra uma «rebeldia contra a impiedade de um destino feroz.»
Imprescindível nas estantes dos amantes da literatura fantástica, a colecção A Biblioteca de Babel apresenta-nos a alguns dos mais reputados autores da literatura fantástica – já passaram por aqui nomes como os de Edgar Allan Poe, Jack Londo, Herbert George Wells ou Franz Kafka – ao mesmo tempo que nos convida a conhecer outros, pouco conhecidos ou simplesmente esquecidos. Tudo com a bênção – e os incríveis prefácios – do mestre Jorge Luis Borges.
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