Trazer o peso de um mito no apelido não deve ser fácil. O escritor cubano Canek Sanchéz Guevara foi desde sempre “o neto rebelde do Che”, designação que, sendo exacta, não deixa de ser redutora. Rebelde porque desde cedo se mostrou crítico do regime cubano: “Ser o neto do Che foi muito difícil”, escreveu. “Estava acostumado a ser eu, e começou a aparecer gente que me dizia como me comportar, o que devia e não devia fazer, que coisas dizer e quais calar. Imaginem, para um pré-anarquista como eu, isso era demasiado. De modo que me empenhei em fazer o contrário”.
Apesar do orgulho nos feitos históricos alcançados pelo avô que nunca conheceu, Canek deixou Cuba em direcção ao exílio no México em 1996. Foi escritor, designer gráfico, repórter de viagens, guitarrista de punk e heavy metal, “vagabundo profissional e filósofo de supermercado”, como gostava de se definir. Foi também um vigoroso opositor daquilo a que chamava a “monarquia” cubana, liderada pelo homem que um dia conheceu como “o tio Fidel”.
A novela “33 Revoluções” ( Ponto de Fuga, 2017) é a obra maior do autor, e levou sete anos a concluir. A escrita precisa e depurada de Canek desenha uma espécie de fábula Kafkiana, um retrato do desencanto de uma geração cubana que acreditava nos ideais da Revolução Castrista.
O protagonista, nunca nomeado, é um negro cubano, filho de militantes revolucionários, confrontado com as maquinações e rodas dentadas de um regime cruel e opressivo, na Havana dos anos 90 do século passado. Abespinhado por um chefe medíocre e cinzento – “A voz dele lembra uma flauta quando recebe ordens e um trombone quando as dá” -, prisioneiro de um emprego entediante e burocrático que não suporta, o herói refugia-se nos livros, na música e nas fotografias que tira.
Neste livro, todas as pessoas são discos riscados, tal como o próprio país: “Tudo se repete: cada dia é uma repetição do anterior, cada semana, mês, ano; e de repetição em repetição o som degrada-se até que resta apenas uma vaga e irreconhecível lembrança do áudio original – a música desaparece, substituída por um arenoso murmúrio incompreensível”. Um dia, saturado, o protagonista recusa-se a ser um delator e entrega o cartão do partido, acentuando assim o seu lento movimento em direcção ao inexorável abismo.
A escrita de Canek veste-se de uma grande clareza e rigor, é uma linguagem muito própria, minuciosa, carregada de imagens e expressões inspiradas. O ambiente de mal-estar é subtilmente definido, sem comentários morais ou soluções paternalistas. É um livro que nos transporta com grande nitidez para uma ilha onde tudo parece bloqueado – um país onde a imagem de Che Guevara está em todo o lado, mas a verdadeira revolução teima em não aparecer.
Nota positiva para a excelente introdução de Viriato Teles, que nos ajuda a perceber o contexto histórico e biográfico do livro e do seu malogrado autor. Canek Sanchéz Guevara morreu inesperadamente em 2015, aos 40 anos, na sequência de uma intervenção cirúrgica ao coração, deixando certamente muitas histórias por contar.
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