«Nunca te metas num sítio de onde não possas sair sozinho.» É esta máxima, transmitida pela sabedoria do lado materno, que o personagem principal de “O osso da borboleta” (Tinta da China, 2014) segue à risca, trancado num andar em ruínas longe dos olhares – e sobretudo das mãos – dos muitos polícias que o perseguem.
X – chamemos-lhe assim para não nos adiantarmos à história – vive isolado do mundo num antigo quarto de brinquedos, sobrevivendo a arroz – há sacos dele até ao tecto – e pombos – grelhados ou cozidos -, cozinhados numa placa eléctrica de dois discos alimentada por uma puxada e bebendo água da chuva ou, nos dias melhores, tirada da torneira do saguão da vizinha.
Para matar o tempo, além de falar com os pombos que apanha no algeroz, entretém-se a brincar com o seu Olimpo pessoal que guarda numa vitrine, a que junta algumas Barbies para conferir uma vertente mais carnal. E recorda uma vida feita de negrume, que começa com a morte de ambos os pais num acidente de avião e a vivência da morte através do consumo de morfina.
Alguns andares abaixo vive Purificação, que sobrevive a torradas e galões, zangada com o facto de a Morte estar mais do que atrasada para o encontro. «Quem inventou a velhice devia arder no inferno», diz muitas vezes para com os seus botões enquanto relembra um passado feito de cremes de beleza, uma gravidez indesejada e um abandono amoroso que a deixou para sempre amarga.
Pilar, a filha de Purificação, visita-a principalmente quando o dinheiro está perto de acabar, mantendo com a mãe uma relação de ringue onde não há qualquer espaço para o afecto. Tem uma casa montada por um amante que vive de negócios suspeitos e desenha estrelinhas num caderno de cada vez que faz amor, conferindo-lhes maior ou menor brilho consoante a dimensão dos orgasmos.
X e Purificação têm em comum o facto de viverem no passado, incapazes de olhar para o presente com qualquer centelha de esperança, abraçados pela solidão e esquecidos pelo desamparo. Até que uma janela se abre e, de repente, o sol parece poder brilhar de novo.
Rui Cardoso Martins oferece, neste seu quarto romance, mais um olhar desencantado sobre um país tristonho e envelhecido, mostrando de que forma o tempo actua sobre os seres que nele ficam aprisionados. E fá-lo com uma boa dose de Filosofia, muito saber enciclopédico e um mar de metáforas, numa escrita que foge a sete pés da linearidade e das fórmulas mágicas vendidas como mezinhas literárias. E ainda bem que assim é.
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