“Os Corpos“, de Rodrigo Magalhães (Quetzal, 2017), é um policial que se afirma pela teia de narrativas paralelas, algumas complementares outras tão só concorrentes, no mesmo espaço temporal e sob o mesmo pretexto. A sensação é a de gravitar num cosmos povoado de personagens autónomas – em alguns momentos desconexas, noutros perfeitamente ordenadas -, um universo de correlações em torno de uma ocorrência policial, hipoteticamente criminal.
Trata-se de uma tentativa de compreender a ordem implícita e a beleza em torno de um episódio que tem tanto de inócuo como de controverso. Sem que haja um contínuo espaço-tempo, há um multi-universo gravitacional em torno de um único episódio, com sucessivas mudanças de voz no seu relato.
O estilo é forte, tanto pela ousadia como pela riqueza da manobra literária. O risco de se perder o fio condutor é significativo. O resultado é, ainda assim, de ganho, pelo desconforto da descontinuidade que prende.
“Um homem apareceu sem vida na praia. Olhos castanhos-claros, ombros largos, cintura estreita, como um bailarino. Bem tratado e bem vestido. Sem carteira ou documentos de identificação. As etiquetas da roupa haviam sido cortadas, não arrancadas. No bolso trazia um bilhete de autocarro usado, um bilhete de comboio de segunda classe, ainda por usar, um maço de tabaco de uma marca com cigarros de outra, um pente de alumínio, uma carteira de vinte fósforos, doze dos quais intactos, e uma caixa de pastilhas elásticas de mentol.”
A partir desta ocorrência surge uma série de figuras: dois policias que registam a situação, um deles rude e atávico, numa forma de estar que desespera a colega de turno, recém-chegada, nostálgica, ansiando por encontrar um espaço e um contexto para viver; o Presidente, que aproveita o aparecimento do corpo para reforçar o poder e a influência mediática da acção e do resultado surpreendente de mandar embalsamar o corpo do desconhecido morto, colocando-o no museu municipal, exposto à curiosidade alheia e de todos aqueles que, perante o mesmo, desfilam na ânsia que corresponda a alguém que procuram; uma médica legista que, num compasso solitário, regista a morte; alguém que lê a um doente em coma as notícias sobre o desconhecido morto e, a pretexto do mesmo, revive o seu próprio medo de uma morre anónima e esquecida; um escritor que se inspira na desgraça e na perda, sem aparente preocupação com o enredo, resgatando pormenores de somenos importância para os unir numa narrativa fragmentada.
Para além de multiplicada e enriquecida pelas perspectivas dos participantes, a narrativa chega a ser oscilante, entre o pensamento e o sentir na primeira pessoa e o relato distanciado de um observador, quase sempre sobre fragmentos de vidas e de histórias de desconserto, de solidão e de desalinho. Figuras que pululam universos alternativos, por vezes desligadas da realidade comezinha, fragmentadas, paralelas. Um cobrador de serviços, mafioso, que espera encontrar no cadáver do desconhecido quem procurava para acerto de contas; a mulher “fugitiva, concubina, mãe, esposa, artista, mulher perdida, suicida falhada, predadora cansada, memorialista de gaveta“, um mistério; ainda, o homem que procura o irmão do qual se perdera na sequência do divórcio dos pais. Todos procuram respostas para as suas demandas no cadáver encontrado e exposto no museu municipal de uma pequena cidade.
Pode haver na leitura de “Os Corpos” o desconforto inicial do aparente desalinho. Ainda assim, trata-se de um sacrifício da sequência e da linearidade que parece consciente e intencional, em nome da arte de enlear, de fazer e desfazer probabilidades. Uma opção que parece coerente com um autor singular, que “gosta muito da palavra não“, sendo este o seu segundo romance publicado depois de “Cinema Peruana” (Quetzal, 2013).
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