“De trás de mim, vinha um som cavo de cada vez que uma das pás batia no solo, seguido de um rumorejo seco quando a terra deslizava na pá. Som cavo, rumorejo, som cavo, rumorejo. (…) Depois ouviu-se um estalo quando os rapazes chegaram ao caixão, e a escavação progrediu devagar. (…) A imagem fez-me sentir um arrepio na espinha. Estremeci e tentei não pensar mais no assunto. Virei o olhar para os abetos e pus-me a contá-los.”
Não sei se conseguiremos virar muita vez a cara para o lado e esquecer o que se vai lendo no romance “Nada” (Bertrand, 2017), de Janne Teller, que chegou a estar proibido na Dinamarca. Um livro que roça o bizarro, alimentando uma dose de crueldade camuflada pela inocência da meia dúzia de jovens que compõem o enredo.
Conduzidos pela premissa de Pierre Anthon, que acha que nada vale a pena e portanto escusam de se prestar a grandes esforços, os colegas de turma embarcam numa missão de atribuir sentido a um totem composto por eles mesmos com uma série de objectos, mais ou menos importantes para cada criança. E é aí que a luta começa e a bizarria se instala. Como dar significado a um amontoado de “coisas” a que apenas eles assistem à sua evolução e significância?
“O pobre hamster soltou guinchos lancinantes e encolheu-se todo na outra extremidade da gaiola, e Gerda chorou e pediu para embrulharem a cobra em jornal para não termos de a ver. Mas os guinchos do Oscarzinho só aumentaram o significado da cobra em formol e ninguém concordou em tapar o frasco.”
À medida que o romance avança, cresce uma procura pelo significado das acções do grupo de jovens, nas quais se vai percebendo um descontrolo cada vez maior, adivinhando-se um desfecho drástico. No entanto, a forma como a autora encontrou para narrar esta história é despudorada e simples, quase como se quisesse transmitir que é quase nada, mas o suficiente para revelar o terror e maldade associada à procura do sentido da vida, intrínseco ao ser humano. Claro que isso não resume o existencialismo que “Nada” encerra em si, pois facilmente compreendemos que toda a sua construção, que cavalga no absurdo e no chocante, foi deliberadamente feita para chocar e espicaçar o leitor, que se vai revoltando e questionando.
“As consequências do comportamento de Cinderela eram incalculáveis. Nunca poderíamos devolver à igreja uma imagem de Jesus coberta de urina. Por fim, um a um, começámos todos a rir. Havia alguma coisa de cómico naquela situação, a imagem sagrada e a urina amarelada de Cinderela a escorrer pelos cotos das pernas partidas e a pingar na serradura. E de qualquer forma, com as pernas partidas, Jesus também já não estava em muito boas condições.”
As convenções são todas abandonadas, tudo perde significado na procura de um outro significado maior. A monstruosidade com que a sequência de eventos ocorre questiona muito os valores que se têm vindo a perder – e isto sem moralismos, mas fazendo, essencialmente, o leitor pensar no peso da educação e na forma como as crianças olham ao seu redor e que significados tiram do que vêem e que motivações as movem. O foco da acção estar num grupo de adolescente foi uma arma muito bem escolhida por Teller para lançar um alerta e um pedido de atenção (só pode).
A forma perversa como alguns dos jovens são retratados e o perfil psicológico que se lhes adivinha, por actos vingativos, confere ao livro contornos de thriller. Estamos perante aquilo que parecem ser crimes menores, até que percebemos que nada é, para eles, insubstituível – ou tudo é passível de ser conquistado, até pelos métodos menos ortodoxos.
“Contudo, pior ainda foi semear em mim a desagradável suspeita de que Pierre Anthon tinha percebido uma coisa: que o significado era relativo e, portanto, não significava nada.
(…) Estava-se bem no universo da fama e na crença no significado, e eu não queria sair de lá, porque fora dele havia apenas o lado de fora e nada.”
Fica a estranha sensação de termos, em mãos, uma metáfora para um grito mudo que muitos jovens dão quando buscam identificação, sentimento de pertença e respeito, num mundo recheado de informações contraditórias, muitas delas fúteis e sem terem uma rede familiar de suporte que os esclareça e acompanhe, formando-os mas, também, crescendo com eles.
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