“— Pobre criança! Inguma é o demónio que bebe a respiração das crianças enquanto estas dormem. Inguma entrou pelas frinchas, sentou-se em cima do peito da menina e bebeu a sua alma.”
Ciência e superstição são os dois ingredientes que compõem o cocktail explosivo da Trilogia Baztán, que Dolores Redondo termina com “Oferenda à Tempestade” (Planeta, 2016). Depois de “O Guardião Invisível” e “Legado nos Ossos”, a autora faz-nos regressar à atmosfera mística do vale Baztán, em Elizondo, uma pequena localidade do País Basco, para pôr um ponto final num sem fim maldições, que parecem perseguir desde a infância Amaia Salazar, a chefe do departamento de homicídios.
A morte súbita de uma bebé torna-se suspeita quando esta apresenta marcas avermelhadas no rosto, resultantes de pressão digital, e o pai da criança tenta roubar o seu cadáver. Para a bisavó, não há dúvida de que a tragédia é obra de Inguma, “um demónio da noite”, “uma das criaturas mais antigas e mais obscuras da mitologia tradicional”, que se “infiltra nos quartos das pessoas que dormem, que se senta sobre o seu peito e que as asfixia roubando-lhes a respiração”. As análises forenses do doutor San Martin convencem a inspectora a investigar outras mortes de bebés, alegadamente vítimas de síndrome de morte súbita do lactente, que acabam por revelar um rasto negro no vale.
Bruxaria, sacrifício de bebés e túmulos vazios. Mitos, lendas, criaturas extraordinárias, seitas e rituais de oferendas. A adoração do demónio e a morte. Dolores Redondo mistura tudo isto num thriller policial que se destaca dos demais, ao misturar ciência e superstição, o racional e o irracional, levando ao extremo o poder das crenças. A noz que carrega a “maldição da bruxa” dentro do seu pequeno cérebro, ou a fórmula mágica de comunicar com as abelhas quando alguém morre para que estas produzam “mais cera para as velas que deviam alumiar o defunto”, são exemplos de mitos que exercem fascínio no leitor.
Uma personagem feminina forte e determinada, com métodos de investigação pouco ortodoxos, que se deixa guiar pelo instinto e esconde um passado traumático, aliada a um romance e drama familiar q.b., reforçam o sucesso da trilogia. A escrita da autora, capaz de criar as atmosferas mais místicas e sombrias, proximidade e envolvimento com o leitor, são a cereja no topo do bolo.
Dolores Redondo merece apenas um ponto negativo quanto ao suspense criado neste último volume, onde a meio começa já a ser previsível para onde penderá a responsabilidade de todo o mal. Mas isso não apaga a mestria com que foi capaz de criar uma trilogia que apresenta três casos policiais distintos, mas que vão brotando do anterior e se desenvolvem em crescendo, tornando esta última obra o culminar de toda uma narrativa agarra da primeira à última linha.
No final, fica aquele sentimento duplo que sempre assombra o leitor quando termina uma trilogia ou uma série que o arrebatou: a satisfação de saber o desfecho e a tristeza de não mais se encontrar com aquelas personagens e aquele mundo.
Dolores Redondo chega este mês às livrarias portuguesas com o seu novo livro “Tudo isto te darei”, com chancela da editora Planeta. A autora espanhola vai ainda marcar presença no Folio — Festival Literário Internacional de Óbidos, no dia 19, protagonizando a primeira mesa de escritores num encontro para debater “Revoltas Interiores”.
Sem Comentários