Duzentos gramas de “Metamorfose” Kafkiana, um molho de quadros Hopperianos e um punhado do mito de Ícaro. Foi com esta receita cultural que Federico Delicado (n. 1956), licenciado em Belas-Artes e autor de vários livros destinados ao público infanto-juvenil, levou para casa o Prémio Compostela de 2014. A obra dá pelo nome de “Ícaro” (Kalandraka, 2014), e apresenta uma história a dois tempos que correm paralelamente sem (aparentemente) nunca se cruzarem.
O lado mais cinzento e Hopperiano tem início quando um rapaz chega a um centro de acolhimento, tentando os assistentes descobrir o paradeiro dos seus pais, intrigados com as feridas que tem nas costas. Apesar dos rumores indicarem que o rapaz foi abandonado, este diz-lhes que os pais são pássaros, e que estão em trânsito entre os dois pólos de modo a viverem dois Verões num só.
Por outro lado, as cores vivas surgem na dimensão fantástica, de contornos Kafkianos, quando o pai do rapaz vê surgir nas suas costas um par de asas, que o obrigarão a deixar o mundo convencional para procurar outras paragens que aceitem a diversidade e a diferença. Algum tempo depois, também a mãe levantará vôo, deixando o rapaz entregue ao seu sonho de se tornar, também ele, um pássaro.
O livro gira, todo ele, num eixo de metáforas, tentando (de)mostrar que nem tudo o que acontece na realidade é necessariamente verdadeiro ou, paralelamente, que há sonhos que têm em si algo mais fantástico que a vida comum, e que deverão ser vividos de olhos abertos.
Ainda que possa ser lida como uma história de esperança, “Ícaro” abre também espaço para uma interpretação mais ao estilo da “Metamorfose”, em que Gregor Samsa, votado ao abandono com a sua transformação num insecto, apenas encontra o consolo na morte. Cabe agora – e por inteiro – ao leitor resolver o enigma apresentado, escolhendo as cores com que fechará a última página.
Sem Comentários