Em 2013, a editora Tinta da China foi constituída arguida nos tribunais angolanos – uma queixa-crime tinha dado entrada em 2012 nos tribunais portugueses sendo depois arquivada – após a publicação de “Diamantes de Sangue: Tortura e Corrupção em Angola”, da autoria de Rafael Marques, um relatório sobre a violação dos direitos humanos na exploração de diamantes na região das Lundas, em Angola. Dois anos depois, Rafael Marques era condenado a seis meses de prisão com pena suspensa, tendo celebrado com os queixosos um acordo que previa a proibição da re-publicação da obra, assim como a sua disponibilização online.
Bárbara Bulhosa, directora da Tinta da China, mandou então a decisão do tribunal às urtigas, reclamando que a decisão não tinha jurisdição europeia e que se tratava de mais um processo Kafkiano com a mão do governo angolano. A posição política da editora não se fez esperar: o livro passou a estar disponível gratuitamente online, podendo ainda hoje ser descarregado aqui.
Em Junho de 2015, Luaty Beirão e outros 16 activistas foram detidos em Luanda por estarem a ler uma adaptação do livro “Da Ditadura à Democracia”, de Gene Sharp, e por questionarem publicamente a liderança de José Eduardo dos Santos. Durante o tempo em que esteve preso, e antes de avançar para uma greve de fome que durou 36 dias e o deixou em perigo de vida, manteve um diário que funcionava como uma forma de ir mantendo a sanidade mental, composto por três cadernos que se veriam depois reduzidos a dois, depois de uma visita surpresa à sela ter confiscado o segundo caderno – que não teve ainda o retorno ao seu autor. Uma vez mais e perante a indiferença do governo português em relação a este assunto, foi a Tinta da China a chegar-se à frente e a marcar pontos, publicando em novembro do ano passado “Sou eu mais livre, então” (Tinta da China, 2016), com o sub-título Diário de um preso político angolano.
Na nota prévia desta edição, Luaty descreve o momento da detenção: “Fui detido no dia 20 de Junho de 2015. Uma cena tirada de um filme que cruza acção e comédia low budget, envolvendo um contingente d mais de dez veículos policiais, acima dos 50 homens, a rua fechada ao trânsito, pistolas e câmaras de filmar – mas sem algemas suficientes, sem conseguir manter as coisas de cada um separadas e bem identificadas e, extremamente grave, sem a exibição de um mandado de captura ou sequer leitura de direitos no acto de detenção. “flagrante delito”, vociferaram“.
Esta publicação reúne as 115 páginas originalmente escritas em formato A5 e manuscrita por Luaty, que levantou algumas dúvidas em relação à sua qualidade, achando-as “bastante incompletas, desenxabidas, indignas de publicação“. Algo que não demoveu Bárbara Bulhosa da sua publicação, e ainda bem porque, para além de um documento histórico escrito na primeira pessoa, esta edição apresenta uma entrevista – quase de vida – de Carlos Vaz Marques a Luaty Beirão, resultado de duas conversas tidas por Skype nos dias 14 e 16 de Outubro de 2016, meses depois da libertação de Luaty Beirão.
Nestas breves páginas Luaty fala da detenção, das condições encontradas na sela, da forma como o poder estava organizado dentro do cativeiro ou dos sonhos maus que, por vezes, o consumiram. Encontramos também muitas rimas e poemas, que talvez um dia venham a conhecer uma edição discográfica. Há listas de livros a serem pedidos aos que o visitam – como Vida de Gandhi ou o Capital de Marx – e uma playlist que faria as delícias de um amante de hip hop – Nas, Jay-Z, KRS One ou Gangstarr estão lá. Há mapas que tentam desenhar a estrutura da cadeia e das selas, e notas sobre alguns dos seus companheiros de luta. Um resumo das reuniões que teve com o Director, e excitações sobre como a situação estava a ser avaliada pela imprensa internacional. E, mesmo que a greve de fome não passe por aqui, há fragmentos que podem ser lidos como um prenúncio: “Tenho metido um mínimo para me aguentar de pé“.
Na entrevista que deu a Carlos Vaz Marques, podemos assistir à sua formação como activista, que decorreu ainda quando era “um menino do regime“, um dos privilegiados do governo de José Eduardo dos Santos, estudando no estrangeiro apesar do parco ordenado declarado pelo pai, que foi o primeiro presidente da Fundação Eduardo dos Santos.
Acompanhamos as manifestações, os discursos inflamados e os ataques das milícias, o surgimento da personagem musical – e um pouco Pessoana – de seu nome Ikonoklasta, os estudos fora de portas e a relação com Portugal, a vivência em Inglaterra e França, o episódio do quilo e setecentos gramas de coca encontrados numa roda de bicicleta na sua chegada ao Aeroporto de Lisboa, o sequestro da sua mulher em Lisboa ou uma descrição do que foi estar 36 dias em greve de fome. Um testemunho único de um activista, lançado por uma editora que vai tratando de apontar o dedo ao governo angolano.
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