É um daqueles acontecimentos históricos que, normalmente, apenas se descobrem nas entrelinhas dos livros escritos sobre a Segunda Guerra Mundial: o campo de concentração de Vernet D’Ariège, situado no sul de França, que esteve em funcionamento entre 1939 e 1944 sob alçada do Governo de Vichy e da ocupação nazi.
Criado em 1918 para alojar as “tropas coloniais”, serviu a partir de 1938 para dar resposta ao êxodo de espanhóis refugiados da Guerra Civil e, depois, ao internamento administrativo de estrangeiros considerados perigosos para a segurança do estado e da ordem pública, passando a ser um campo repressivo destinado a encerrar “estrangeiros indesejáveis”. A partir de 1942 passou também a servir como campo de trânsito para judeus perseguidos, que eram depois deportados para os Läger nazis.
Estima-se que entre 1939 e 1944 tenham estado em Vernet D’Ariège cerca de 40000 pessoas, entre as quais o mestre do humor negro Max Aub, que era filiado no Partido Socialista Operário Espanhol, e veio a ser mais tarde deportado para a Argélia.
De origem judaica, Max Aub foi levado para Vernet em Março de 1940, na sequência de uma denúncia anónima que o acusava de ser comunista, quando se encontrava refugiado em Paris após ter conseguido escapar, em Janeiro de 1939, à repressão do fascismo em Espanha.
“Manuscrito Corvo” (Antígona, 2017) foi primeiramente publicado entre 1949 e 1950 na revista Sala de Espera, que Aub editou sozinho no México – país para onde fugiu em 1942. De acordo com o prefácio desta edição da Antígona, assinado por Júlio Henriques, o livro congrega “literatura fantástica, humor negro e inventividade literária“.
Max Aub recria a sua passagem por Vernet escolhendo para narrador e protagonista Jacobo, um corvo verdadeiro que deambulava pelo Campo. Nas palavras de Aub, que diz ter encontrado na sua bagagem um manuscrito escrito por Jacobo, este era “um corvo ensinado, cuja maior habilidade consistia em pousar em cima das tampas das latrinas repletas, próprias e alheias, que levávamos para despejar e limpar no rio, com uma regularidade e constância dignas de muito melhor causa. Depois passeava, todo importante, entre barracões, e até voava do A para o B e para o C, sectores que nos dividiam ao acaso, embora, em princípio, o primeiro correspondesse aos denominados detidos “políticos”, o último aos delinquentes comuns e o outro à malta das mais variadas índoles: judeus, espanhóis republicanos, um ou outro conde polaco, húngaros sem documentos, italianos anti-fascistas, soldados das Brigadas Internacionais, vagabundos, professores, etc.“.
Max Aub apresenta com um humor negro e refinado uma experiência limiar, mantendo a ironia em câmara ardente logo desde as primeiras linhas: “O índice (…) promete mais do que o texto oferece; coisa que, por outro lado, não é defeito puramente corvino: quem não tiver traçado índices sem futuro, que levante o braço“. Ou, de forma superior, quando Jacobo cita algumas das suas fontes: “Dados obtidos por gentileza do Professor Lowenthal, da Universidade de Colónia. Barraca 33“.
Jacobo não tem dúvidas sobre a inferioridade da raça humana perante a dos corvos, estudando-a e criticando-a sem concessões, estranhando a sua capacidade de obediência e a submissão de muitos a uns poucos, enquanto os corvos não trabalham para outrem e se reproduzem alegremente, vivendo em liberdade sem pensar na aniquilação.
Neste livro, que não é novela nem ensaio – talvez uma fábula em monólogo -, Max Aub discorre sobre o grau máximo do absurdo a que a espécie humana conseguiu chegar. Depois de meses a observar esta estranha espécie, a Jacobo não restam dúvidas: o melhor mesmo é voar dali para fora. Um dos mais estranhos e singulares livros escritos sobre a Guerra e a condição humana.
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