Não foi puro acaso. A primeira entrevista do Deus Me Livro foi escolhida a dedo, recaindo numa das mais entusiasmantes escritoras que tem feito da língua portuguesa a sua casa. Ainda que o reconhecimento já tivesse chegado, tanto através da crítica, dos prémios ou de um público bem informado, foi com “O Retorno” que a escrita de Dulce Maria Cardoso chegou ao grande público, permitindo a descoberta de uma obra que ocupa já um lugar de honra na Literatura Portuguesa.
“Tudo são histórias de amor”, livro de contos editado pela Tinta da China este ano, serviu de ponto de partida para uma pequena conversa com a escritora, que considera o amor o mais benigno dos poderes.
Enquanto lia “Tudo são histórias de amor”, senti-me por vezes transportado ao reino das emoções construído por Flannery O`Connor, onde há uma presença constante da melancolia e da tristeza. Considera-se uma pessoa melancólica ou habitada por uma certa tristeza?
Gosto muito do trabalho da Flannery O’ Connor e entendo essa aproximação como um elogio. Não me julgo melancólica nem triste. Mas posso estar enganada, nunca se é bom juiz em causa própria. De qualquer maneira o que escrevo não é o que eu sou. Isto se o que escrevo é triste e melancólico o que também não me parece.
De onde lhe veio este fascínio pela tragédia? Em “Tudo são histórias de amor” constrói dois contos a partir das histórias de Joana Cipriano e da Ponte de Entre-os-Rios.
Não diria que a tragédia me fascina. Trabalho sobre a realidade como qualquer escritor trabalha mesmo os que optam pelo realismo mágico ou pelo surrealismo. E a realidade é muitas vezes trágica ou dramática. E muitas vezes uma comédia. Ou uma longo tédio. E e e… Tento ir escrevendo sobre tudo porque não há como fugir à realidade, ou por outras palavras não há como fugir à vida. Ainda que estes casos sejam completamente diferentes têm em comum uma coisa: não deveriam ter acontecido. Não deveria ter havido o crime ou a negligência que esteve na origem. A ponte deveria ter sido fechada ou reparada. Se não tivesse havido tanta negligência aquelas pessoas não teriam morrido ali naquela noite. Se a Justiça tivesse cumprido o seu papel o que aconteceu à mãe da Joana não teria sido possível. Pela própria Joana, vítima principal. Ao espancarem a mãe da Joana para forçarem uma confissão perdeu-se irremediavelmente a possibilidade de saber o que aconteceu e de se fazer justiça em conformidade com isso. A literatura também serve para transformar o acontecido.
Miguel Esteves Cardoso foi direito ao assunto e disse que “o amor é fodido”. Nestes contos, para lá da dificuldade de o amor vencer, assistimos à sua reinvenção: retira-se o foco do amor conjugal e aponta-se, antes, para o amor entre irmãos ou o amor pela justiça. Como vê a Dulce Maria Cardoso o amor: emoção, poder?
As relações entre os humanos ( e talvez entre os outros animais) são inequivocamente relações de poder. E o amor é o mais benigno de todos os poderes. É assim que eu vejo o amor. Como o mais benigno dos poderes.
“O Retorno” foi a pedra de toque que fez com que pudesse, finalmente, ser descoberta, tanto no país como no mundo. De onde lhe surgiu a ideia de contar o regresso dos portugueses a partir do olhar de um adolescente?
Será injusto dizer que O retorno possibilitou a descoberta do meu trabalho. Antes havia escrito três romances que receberam vários prémios e foram finalistas de outros. Que já eram traduzidos em várias línguas e sobre os quais alguns académicos trabalhavam. Ou outros artistas. Para as pessoas que já tinham recebido tão bem o meu trabalho será injusto atribuir esse papel descoberta a O retorno. O retorno possibilitou que um publico bastante mais alargado conhecesse o meu trabalho. Creio que O retorno já vai na 8ª edição e estou grata a cada um dos novos leitores. Mas já havia trabalho antes de O retorno. E já houve depois.
A escolha de um adolescente como narrador prende-se com razões afectivas – uma homenagem a um amigo que conheci em Luanda cujos dois irmãos foram assassinados, razões literárias – conseguir escrever como outro, razões politicas – uma revolução transforma os países em adolescentes no sentido que é possível escolher o futuro e razões lúdicas – ser um outro mais distante de mim possível.
Vejo o amor como o mais benigno dos poderes.
Revê-se de alguma forma na personagem do Rui? Que parte de si ficou impressa na personagem principal de “O Retorno”?
Acredito que toda a escrita é autobiográfica. Às vezes dou conta disso outras não, mas tudo é autobiográfico. Como vivência ou pensamento. Nunca distingui verdadeiramente uma coisa da outra a não ser quando convivo com os outros por razões de sanidade mental. O Rui já estava em mim e continuará em mim. Inteiro. O Rui para mim é tão real como qualquer pessoa de carne e osso.
Como deu por si a escrever histórias para crianças?
Foi uma encomenda, que muito agradeço, da RTP2. Não foi fácil escrever para crianças. Os adultos filtram a informação de acordo com os seus valores. As crianças absorvem tudo para construir os valores que nortearão as suas vidas. E tem de ser divertido. As crianças não têm ( e ainda bem) a ideia de dever. Interessam-se ou não.
Apesar de uma escrita fluida e sem pretensiosismos, cada frase sua parece ter sido trabalhada até à exaustão, entrando nos ouvidos do leitor como música. Considera-se uma perfeccionista enquanto criadora?
Sou obsessiva. Corrijo muito. Enquanto houver qualquer coisa que me desagrade corrijo. Sou incapaz de pensar, não está bem mas fica assim. Mais depressa não publico do que publico um texto com uma frase que me desagrade.
Pode dizer-se que é uma pessoa interventiva, tanto no dia-a-dia como na escrita?
Tento ser.
Que livros acompanharam a sua infância, despertando o gosto tanto pela leitura como pela escrita?
Na infância foram os livros normais da infância, isto, é as Anitas, As aventuras dos Cinco, o Pinóquio e as Cinderelas e Gatas borralheiras. Em adolescente comecei a ler compulsivamente. Lia muito. Como li sem qualquer acompanhamento de adultos pude ler os clássicos sem saber que eram clássicos. Pude escolher livremente o que me agradava. Li sem qualquer preconceito e isso é um enorme privilégio.
O que nos pode já contar sobre o novo romance com data de edição prevista para este ano?
Já não sairá este ano. Não terei tempo de o acabar. Chama-se “O amante americano” e já estava a escrevê-lo antes de “O retorno”. E mais não digo. Não por qualquer superstição mas por não saber falar dos meus projectos.
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