“O orgulho protege a vontade de viver. De outra forma, as pessoas não teriam energia. Em vez de falarem como vítimas, podem falar como sobreviventes. A vítima é impotente, o sobrevivente ainda controla” – é este o domínio da dignidade que Alexandra Lucas Coelho transmite em “E a noite roda” (Companhia das Letras, 2017 – reedição).
Ana e Léon, ela catalã, ele belga, ambos repórteres, conhecem-se em contextos de conflito (Gaza, Cisjordânia e Jerusalém) e, nessa ambiência, vivem um romance intenso envolto em múltiplos caminhos ou destinos, tal como os momentos que testemunham. A não linearidade das suas trajectórias e da história amorosa que vivem assenta num conjunto de outras informações, de outros mundos e decisões que confluem para o desfecho, ligações que facilitam a navegação de quem se apropria dos acontecimentos.
Alexandra Lucas Coelho revela habilidade na linguagem que usa e que retrata quer realidades exteriores e factuais, quer estados emocionais associados ao evoluir da relação entre os dois protagonistas. O cunho é autobiográfico, ao género da literatura de viagens contemporânea, assente na exibição que Ana faz da sua experiência vivencial e subjectiva, assumindo o primeiro plano da narrativa quando descreve o que vive e sente junto de Léon, como o que presencia nos trabalhos que faz como repórter. O resultado é um discurso intimista, alimentado por muita introspecção e orientado pelo fluxo da memória.
Numa sociedade marcada pela globalidade, a permanência relativamente prolongada de Ana nos locais sobre os quais escreve retrata um jornalismo fundamentalmente de reportagem, ainda que tenha procurado ser um pouco mais que mera observadora entre 2004 e 2010, em alguns momentos permanecendo por períodos mais prolongados nalguns locais, com laivos de um jornalismo de proximidade. Pelo entremeio colhem-se bons relatos de informação histórica desta época, em Jerusalém, Ramallah e Gaza, entre outros locais de Israel e da Palestina. Colhem-se igualmente narrativas breves de passagens por Paris e diferentes locais de Espanha, fundamentalmente Barcelona, residência da protagonista.
No final fica a constatação de, muito provavelmente, não estarmos perante literatura de viagem, jornalismo de reportagem ou sequer de um romance, no sentido ortodoxo do termo. Estamos talvez diante de algo diferente e especial: um livro sobre paixões, disputas e rupturas, em dois planos simultâneos, o político e o amoroso, ambos com relatos centrados no momento, como uma seiva e um embalo, quase sempre em contextos de sobrevivência, onde o mote parece ser a preservação da lucidez na tomada de decisão.
Identifica-se a ânsia de preservação da integridade da existência quando está em causa a sobrevivência material e a disputa emocional. O registo é de eu-outro, demonstrando como é possível viver e continuar alimentando a identidade, contendo a tentação para cedências com ganhos imediatos, mas custos longínquos, tudo isto, mais uma vez, nas disputas entre povos como nas cedências entre amantes.
Este foi o primeiro romance de Alexandra Lucas Coelho, agora reeditado, reconhecido em 2012 com o Grande Prémio de Romance e Novela da APE. Já se seguiram mais dois, precedidos por cinco livros de reportagem-crónica-viagem. “E a noite roda” é sentido como uma obra de transição, colhendo o melhor de dois mundos: a reportagem jornalística e a fantasia.
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