Em “Enigma – História de Uma Mudança de Sexo” (Tinta da China, 2017), de Jan Morris, temos perante nós dezanove capítulos da vida de um homem e de uma mulher, embutidos numa mesma personagem, real e contemporânea.
Na década de 70, Jan Morris conta a sua história de transexualidade, mudança de sexo e identidade, num registo autobiográfico que vai para além da exploração habitualmente mediatizada e quase sórdida do tema. Trata-se de acompanhar o florescimento de uma necessidade, a formação de uma certeza e a ponderação e gestão do impacto psicológico, familiar e social de uma decisão.
A exposição é maioritariamente diacrónica, representando elementos e factos singulares na vida e identidade do(a) protagonista, permitindo visualizar o momento em que este identificou que algo de diferente se passava consigo, acompanhar a muita reflexão e ponderação que realizou em vários momentos, um processo desprovido de ímpetos, assente numa aceitação e honestidade contagiantes.
Demonstrando a complexidade do que está em causa, a identidade procurada e alcançada é problematizada com abundância de informação introspectiva e de enquadramento social e cultural, com rupturas e adaptações de experiências, excertos de muita coragem.
A forma como foram sentidas as reacções fornece elementos caracterizadores de uma época e da forma como o tema da transexualidade foi encarado pelo cidadão comum e anónimo, e também pela sociedade médica: através da experiência na primeira pessoa de Jan Morris, tomamos contacto com questões relacionadas com as convenções sociais e a evolução da ciência ao longo da segunda metade do século XX.
Depois de ter sido pela primeira vez publicado em Portugal em 1974, com o título de “Comundrum: o Enigma”, a Tinta da China torna hoje acessível uma edição revista pelo autor em 2001 que se mantém fiel ao primeiro lançamento – segundo o próprio, apenas com ligeiras correções factuais.
Jan começou por ser James, até aos quarenta anos, um historiador e escritor galês, respeitado em diferentes circuitos, com uma formação que passou pela frequência do Colégio de Oxford, pela vida militar como Lanceiro da Rainha, por muitas viagens e reportagens um pouco por todo o mundo como jornalista no Guardian e no Times. Situa aos três/quatro anos a primeira percepção de diferença, de desejo em pertencer ao sexo feminino, achando-se ainda assim uma criança feliz e normalíssima, poupada a episódios traumáticos e à exposição a situações difusas, com uma aparência manifestamente de rapaz. Sempre se sentiu respeitado e aceite nos vários círculos por onde andou. Manteve uma relação de grande longevidade com a mulher, mãe dos seus cinco filhos, com a qual se mantém a viver ainda hoje, numa surpreendente relação de aceitação e cumplicidade.
Guardou a convicção de pertencer ao lado errado durante vinte anos. A opção em assumir a diferença esteve relacionada não tanto com o sexo, mas antes com a identidade – “Nascera com o corpo errado, sendo do género feminino mas do sexo masculino. (…) Ao passo que o sexo era uma questão de glândulas ou válvulas, o género era psicológico, cultural ou, na minha perspectiva, espiritual.”
Em 1972, com uma primeira operação realizada em Casablanca, inicia-se a metamorfose, conseguindo finalmente ser dono e senhor também do seu corpo. Em “Enigma”, Jan Morris fala da sua experiência conciliando transparência e discrição. O registo é de elegância tanto na narrativa como na forma como fala de intimidade sem a vulgarizar. “Trinta e cinco anos como homem, dez anos a meio caminho entre os dois sexos e o resto da vida como eu própria”.
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