O jornalista e escritor Ruy Castro é um dos mais respeitados biógrafos brasileiros: já traçou o retrato de personalidades como Nelson Rodrigues, o futebolista Garrincha, Carmen Miranda e, inclusive, a Bossa Nova. No seu livro “Carnaval no Fogo” (Tinta da China, 2016), o protagonista da biografia é o Rio de Janeiro, “uma das cidades mais excitantes do mundo”, nas palavras do autor, “talvez um pouco excitante demais”.
“O Rio peca pelo excesso de electricidade. E isso não é de hoje nem de ontem. Vem desde o primeiro dia”. Com uma linguagem coloquial e bem-humorada, Castro guia-nos pela história da cidade maravilhosa, desde o dia em que os índios da Baía de Guanabara viram, no horizonte, as velas da nau de Américo Vespúcio, em 1502.
Alvo de constante disputa entre franceses, portugueses, piratas e flibusteiros, o Rio acolheu a sua quota-parte de personagens carismáticos: desde o lobo-do-mar Nicolas Durand de Villegagnon, que tentou ali fundar uma colónia tropical francesa no século XVI, até ao seu grande amigo, o cacique tupinambá Cunhambembe, um fervoroso canibal (chegaram a escrever, juntos, um dicionário franco-tupi).
Com um contagiante sentido de humor, o autor põe a nu as diversas facetas da cidade: a invenção do carioca – “Um carioca jamais poderá ser suíço, mas talvez até um suíço possa se tornar carioca, se o Rio tiver tempo de seduzi-lo e, no bom sentido, corrompê-lo”; a mítica informalidade – “O Rio reduz todo o mundo (…) a uma camisa com as fraldas de fora, a uma bermuda amassada e a um chinelo no dedo”; e ainda o carnaval, o samba, a praia e o sexo – ou a “histórica elasticidade de costumes”, como lhe chama Ruy Castro.
Como protagonista, o Rio de Janeiro é um personagem fascinante. Vive de contrastes e paradoxos e, fazendo parte do Brasil, “um país de ricos ridiculamente ricos e pobres assombrosamente pobres”, sempre reflectiu essa disparidade. A tão temida violência, com ocorrências diárias – perseguições, tiroteios, incêndios de autocarros e balas perdidas -, faz com que quem veja de fora pense que o Rio vive em estado de permanente sobressalto. A realidade não é bem assim: “A maior parte das altercações se dá nos próprios morros ou nas vias expressas. Tal como no resto do Brasil, 99% dos cariocas só tomam conhecimento delas pela televisão”.
Pelas páginas de “Carnaval no Fogo” passa também muita música: por lá se passeiam Vinicius de Moraes e Tom Jobim, autores da “Garota de Ipanema”, e o samba, verdadeira voz da cidade, com os seus blocos de nomes espaventosos: o “Suvaco do Cristo”, a “Minerva Assanhada”, o “Nem muda nem sai de cima”, o “Que Merda É Essa?”. Não falta também o “Bloco do Eu Sozinho”, “composto por um cidadão solitário que saiu à rua, por mais de cinquenta anos, ostentando a tabuleta com o nome da sua agremiação de um homem só”.
Castro é um coleccionador de pormenores e histórias deliciosas, que temperam este livro com sorrisos a cada página: quem diria, por exemplo, que o primeiro acidente automobilístico do Rio foi causado por um poeta? Não um poeta qualquer, mas o famoso Olavo Bilac – “Ao tentar dirigir o primeiro e então único automóvel da cidade, esqueceu-se de perguntar a diferença entre o acelerador e o freio. Simplesmente tomou emprestado o carro do seu amigo, o jornalista José do Patrocínio, girou a manivela, correu para o volante e acertou a primeira árvore que lhe surgiu na frente. Ninguém morreu, exceto o carro e a árvore”.
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