O terceiro romance de David Machado tem uma escrita clara, fotográfica e eficaz, relatando episódios das vidas de Júlia – personagem que começa com 19 anos e que o leitor reencontrará até aos seus 43 anos, alguém que nunca contou toda a verdade sobre o que lhe aconteceu em 1993 e que manteve este passado debaixo da pele – e Catarina, menina sua vizinha, que Júlia conheceu aos dezanove anos quando esta tinha quatro ou cinco anos.
“Debaixo da Pele” (D. Quixote, 2017) é um livro difícil de ler se o leitor não tiver atenção a cada uma das palavras que o compõem, nas suas três distintas partes (1994, 2010 e 2017), sempre com narradores distintos. Fala profundamente do medo, dos traumas que não se apagam, da fragilidade emocional que coarta, da imposição aos outros, de quem se gosta, de regras e obrigações impossíveis de cumprir. Um romance que não se esquecerá facilmente pelo recorte dado às personagens, pelo efeito onírico das coisas que vivem (vivem mesmo?), pela forma misteriosa como se revelam lentamente ao leitor que se sente a recolher peças mínimas de uma história que vai ter desenhar e compreender. Há aqui uma enorme maturidade no autor para se aventurar por caminhos sinistros, por onde avançam pessoas magoadas.
O leitor poderá, também, surpreender-se com o estilo do autor: muitas vezes David Machado risca palavras nas frases que quer que sejam lidas – mantém as palavras iniciais riscadas e junta as escolhidas posteriormente, travando com o leitor um jogo psicológico que tem um efeito extremamente eficaz, não só na trama da(s) história(s) como também no suspense que lhe(s) imprime com uma intenção determinada. A dor traumática perpassa em todo o romance e impede que as personagens principais (Júlia e Catarina) admitam, sequer, que possam ser amadas.
“Um dia há muitos anos, aquele rapaz bateu-lhe, ela acreditava que eram amigos e depois ele fez-lhe mal, e então o medo meteu-se nela para sempre, como caruncho num barrote húmido, comendo-a por dentro devagarinho, até a deixar oca (…).”
A culpa, o medo, a dor traumática são os verdadeiros personagens que atravessam o romance, quer em Júlia e Catarina, quer em Salomão ou no Coruja. São pessoas moldadas pelos seus pesadelos, aos quais que voltam recorrentemente. São vítimas ou carrascos? “Eu não sou um homem mau. Ela não é quem tu pensas.”
No entanto, “Debaixo da Pele” é um romance redentor: mostra caminhos para enfrentar os medos e para alterar comportamentos de auto-exclusão (“tudo o que conheço é silêncio e solidão”), mostra o poder de momentos partilhados (como Manuel e Rachel) que libertam do isolamento, fala (consistentemente) do problema da violência sobre as mulheres nas relações de intimidade. De salvar e de ser salvo.
“Eram pessoas que gostavam de mim e é muito difícil quando alguém gosta de mim.”
1 Commentário
Estou a terminar a leitura, é um livro inquietante, impossível deixar-nos indiferentes…Entranha-se também debaixo da nossa pele. Obrigada pela partilha!