“Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse, eu não tenho que fazer, e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração cadavérica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração directa e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem(…) Esta é a grande vantagem da morte, que, se não deixa boca para rir, também não deixa olhos para chorar…Heis-de cair. ”
Machado de Assis (1839-1908), primeiro presidente da Academia Brasileira das Letras, é um escritor de vulto da literatura do Brasil mas incontornável também para os portugueses: filho de mãe açoriana e pai carioca, casado durante toda a sua vida adulta com uma portuguesa, fortemente influenciado por Almeida Garrett, é uma personalidade com fortes laços com a identidade portuguesa.”
“Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Guerra & Paz Editores, 2016 – reedição) é um livro escrito depois de uma grave crise de saúde do autor, tinha ele 40 anos, tendo sido considerado pela crítica como o romance da maturidade, uma vez que introduz, na literatura brasileira, o realismo, cortando abruptamente com a convencionalidade romântica dos seus anteriores romances.
Editado pela primeira vez em folhetim na Revista Brasileira, em 1880, e depois em livro, em 1891, é um “romance” muito original que aposta numa fortíssima crítica social (atente-se a personagem Prudêncio, antigo escravo que, uma vez livre, violenta agora o seu escravo…), da circunstância do Brasil num contexto de grandes desigualdades (reinado do imperador Pedro II, altura em que a escravatura ainda era legal).
Nestas Memórias, o autor destrói denodadamente todas as convenções literárias do seu tempo, maltratando o leitor com uma certa finura psicológica e apresentando-lhe um livro com capítulos em branco e outros sem utilidade (um deles apenas com uma linha a dizer que é inútil) para a economia da narrativa, a par de capítulos fascinantes – particularmente o capitulo VII, onde descreve a regularidade do calendário dos séculos de forma magistral. É um livro muito inteligente, pela profunda cultura do autor, pela sua concisa gravidade e, também, pela forma divertida como interage com o leitor, ganhando o seu apreço frase após frase, pensamento a pensamento.
“A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote, e adeus.”
A narrativa das memórias é de Brás Cubas, depois de morto. São as memórias de quem se preparou para triunfar na vida sem o ter conseguido. É o vazio final sentido com desencanto no plano pessoal e afectivo e, também, no político, narrado com lucidez e na justa expressão.
É uma obra de finado, como nos diz Brás Cubas – na introdução que dedica ao leitor-, eivada de rabugens de pessimismo e escrita “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”.
Os capítulos, muitos e muito curtos, encerram pequenos fragmentos de um verdadeiro diário confessional do narrador Brás Cubas, e os seus pensamentos, mostrando uma visão sempre realista das circunstâncias de vida, são transmitidos ora de forma travessa, ora de forma maliciosa.
O livro encerra, também, uma insofismável tristeza e desencanto pela vida vivida, que abarca e interpela o leitor permanentemente sobre as oportunidades perdidas, os amores perdidos, as amizades perdidas, as pessoas perdidas para a morte, o tempo perdido…
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Sem Comentários