A “Escada de Istambul” (Oficina do Livro, 2016) é um romance histórico inspirado na família Camondo, extinta em Auschwitz. Tiago Salazar assume-se como narrador que chega a uma escadaria em Istambul e quer saber “de onde vem e para onde vai”. Estabelece conversa com o turco Mehte que, generosamente, o convida para a sua casa e para uma viagem no tempo, na história da escadaria que era, também, a história de uma família judia.
Os Camondo, judeus ricos com origens remotas em Veneza, Toledo e talvez até Lisboa, têm registos de presença em Istambul pelo menos desde o Séc. XVIII. “Onde punham a mão faziam fortuna”, qual toque de Midas. Por muito que se tivessem esforçado por garantir que o enriquecimento era acompanhado por investimento nas comunidades em que viviam, que os processos eram transparentes e que existia abertura à diversidade cultural e religiosa, não conseguiram proteger-se da desconfiança e de ser reiteradamente escorraçados, até ao extermínio último, apenas e só por serem o que eram: judeus. Incompreendidos e sucessivamente despojados dos bens patrimoniais, preservaram ainda assim a identidade e a integridade, resistindo ao ressentimento e à renúncia de princípios, persistindo no recomeço, uma e outra vez até ao momento fatídico, de não retorno.
Uns intrinsecamente mais idealistas do que outros, todos os elementos da família Camondo eram educados para vencer e fazer prevalecer a razão sobre o instinto, respeitando os valores e a ética do patriarca, numa alternância pungente entre firmeza e liberdade. Defendiam a arte de não anular a diferença, de aproximar a oposição, de respeitar até quem não respeita. A Escola das Religiões foi disso um ícone, uma escola aberta a todos onde se professavam todos os credos e se punham em prática valores de respeito pela diferença e paixão pelo saber, em respeito ao “Tsedaka, princípio religioso segundo o qual a vida é encarada como uma missão, um dever para com os outros, o outro acima de tudo.
Todo o romance está impregnado de mensagens éticas no discurso e no agir dos personagens: “Uma escada tem dois limiares, define duas portas, a do primeiro e a do último passo, não importa se a sobes, se a desces, porque haverá sempre um primeiro e um último passo. Cada degrau implica um esforço, uma tensão, um esticar de corda no arco do corpo, que se curva em obediência ao para onde vai. Em alguns desgraçados seres, também se lhes dobra o arco do espírito. Desgraçados porque, se tal sucede, nunca mais são os mesmos que eram antes de se aventurarem escada acima ou escada abaixo, tanto faz”.
Hoje, em pleno séc. XXI, em Paris, não muito longe do Arco do Triunfo, uma mansão continua a contar a história desta família e de uma época. A casa e toda a sua colecção de objectos, móveis e obras de arte, foram doadas ao Estado Francês pelo Conde Moïse de Camondo após a Primeira Guerra Mundial. Moïse de Camondo encontrara na arte uma maneira de preservar a memória da família, continuando até o final dos seus dias a aumentar a colecção com peças raras, em homenagem ao seu filho Nissim, que fora morto em combate durante a Primeira Guerra Mundial. Moïse morre em 1935 e, após sua morte, a família fica reduzida à sua filha Béatrice e aos seus dois netos, todos mortos em 1943 nos campos nazis. As mais de trezentas páginas de Tiago Salazar, divididas em duas partes, transportam-nos para a intimidade das várias gerações desta família, no período compreendido entre o séc. XVIII e a segunda guerra mundial, primeiro em Istambul e depois em Paris.
Sendo um livro que resulta de um encontro casual entre dois estranhos em Istambul, o curioso Tiago Salazar e o conversador arquitecto turco Mehte Göktug, “A Escada de Istambul” é para o autor um ajuste de contas histórico com o judaísmo, reavivando a memória de uma família que considera notável. Jornalista, contista, cronista, autor de livros de viagens e agora romancista, Tiago Salazar deixou-se encantar pela história real dos Camondo, considerando-a uma “história da humanidade, de uma família que representa um todo”. Tal encanto impregna o romance de um respeito e consideração que passa para o leitor.
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