Nas margens do Sena, um homem é enforcado e os dois mil maridos da cidade estão obrigados a, por turnos, contemplar o cadáver. A mensagem é clara: “Uma má conduta termina sempre com o prevaricador pendurado na ponta de uma corda“. Pierre era um desses maridos. Francine, uma das cidadãs presentes, era sua mulher e dona, numa sociedade onde os homens não têm direitos, são propriedade das cidadãs mulheres e ficam em casa, servindo-as e contribuindo para que estas cumpram o papel que a sociedade lhes atribuiu – nomeadamente o da procriação obrigatória. Caso tenham algum defeito podem simplesmente ser devolvidos ou substituídos por outros, seleccionados pelo Instituto de Maridos. Pierre tinha efectivamente uma imperfeição, mas Francine parecia não estar em condições de o devolver. É esta a porta de entrada para “O Homem Domesticado” (Casa das Letras, 2017), o romance de Nuno Gomes Garcia.
Ao casal Francine e Pierre junta-se Jean, um novo marido, menos formatado aos ditames físicos e comportamentais de um macho. Junto deste Francine descobre um duplo prazer: a luxúria carnal, encarada como desnecessária e primitiva e o inexplicável atractivo libertador pelo subversivo; e, também, a dificuldade em gerir a felicidade que nunca conhecera, na convicção de estar a tornar-se numa criminosa. “Antigamente, existia um elemento fulcral nas relações humanas: a fornicação. Os machos com quem lido nunca ouviram falar em semelhante fenómeno, ficando até um pouco enojados quando, no quadro de algumas experiências de andro-psicologia, lhes é explicado no que consistia“. Neste quadro, a gravidez é considerada crime, consequência da tal fornicação ilegal. Perante este cenário, Francine pensa que a sua vida acabou.
Nuno Gomes Garcia retrata uma sociedade diferente mas, ainda assim, em tudo semelhante à actual. Nela encontramos domínio de um género relativamente a outro, manipulação genética e perversão no uso da ciência, uma procura incessante da perfeição e do comodismo. Junta-se a ambição, o suborno e o ciúme e o leque começa a ficar composto. Para que o retrato fique completo não faltam as cenas de violência doméstica. Homem dominado ou homem dominante, tudo dependerá do ponto de vista. O certo é que havia ainda pelo menos um macho que não fora domesticado – e isso fazia toda a diferença -, reacendendo os mais básicos instintos da espécie: intimidade, afectividade e agressividade.
Trata-se de um enredo muito equilibrado, sendo o epílogo o reinício de algo, deixando a porta aberta à continuidade, como se, em vez de ficção, estivéssemos perante a realidade. Uma narrativa não linear, muito para além da ligação que se estabelece com as personagens e do exercício de transposição para a realidade que se faça, atravessada por várias mensagens. Desde logo, os custos de programas de normalização em nome da perfeição e do controlo do desvio; a tendência para colar um rótulo no que é diferente, classificando-o como anómalo; a procura de verdades absolutas; uma sociedade organizada com base no valor e papel atribuídos à nascença a cada ser, irreversíveis, determinados pelo género e pela utilidade, sem espaço para individualidade, contestação ou transformação; um verdadeiro reino do estereótipo e da homogeneização, assustador.
Neste seu terceiro romance, Nuno Gomes Garcia mantém-se fiel a algo que já enunciara antes: “Uma premissa louca, completamente irrealista, que possa levar o ser humano aos seus limites e à transformação“. Presente-se a influência da sua formação académica e profissional em História e Arqueologia, na forma como cria personagens e as insere numa determinada estrutura social e cultural, descrevendo e conjecturando. Neste Homem Domesticado, não há evidências. É preciso estarmos disponíveis para equacionar novos cenários e sentir, quiçá, novas emoções.
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