Há livros que se lêem e que ficam. Provavelmente porque começam por ser descobertas e permanecem como confirmação do interesse pelo tema que se adivinha, pela novidade que se constata ou pela substância que se sente. “O Lugar Escuro” (Tinta da China, 2017), uma história de senilidade e loucura de Heloisa Seixas, é um livro com substância. Uma escrita que se sente pertença da autora, na dupla vertente de retrato de uma realidade vivida pela própria e pelo facto de expôr um tema a que é atribuído relevância.
Durante os anos em que acompanhou e geriu de perto a doença da mãe, Heloisa Freitas reteve e partilhou episódios e emoções muitas vezes auto-censurados. Lidar com o descontrolo, o desnorte e a desordem pessoal de alguém que já fora a sua bússola – e o leme da sua própria trajetória de vida – revelou-se mais difícil do que imaginara. O processo foi gradual, com pequenos grandes sinais que foram desvalorizados até ao momento da explosão, aquele em que, pela primeira vez, a mãe de Heloisa “falava a linguagem dos loucos“. Para trás ficara a mudança de temperamento, os esquecimentos e trocas de nomes atribuídos à idade. Era como se a pessoa altamente estruturada e controlada tivesse desaparecido, dando lugar a uma personagem oposta, sem filtros, desprovida de autocensura, deixando vir ao de cima tudo o que controlara, escamoteara ou escondera.
A convivência entre ambas torna-se cada vez mais difícil. O quotidiano passa a ser móvel e fugidio. O que vale para um dia rapidamente se altera, deixando de fazer sentido, tudo mudando de um momento para o outro.
É assim que a autora nos transmite a sua experiência pessoal como filha cuidadora, até ao fim, de uma doente de Alzheimer. Partilha com o leitor o seu próprio conflito interior, entre o amor incondicional pela mãe e a saturação pela imprevisibilidade do seu comportamento, uma luta permanente para manter a mãe ligada à realidade que já não é a sua e para, ela própria, se manter fiel à vontade de não perder de vista os afectos de uma vida e de não desistir de cuidar.
Em que momento se aceita ou se desiste de contrariar os discursos e os comportamentos mais insanos? Em que momento se começa a desejar que simplesmente tudo termine? E como se aceitam estes desejos sem nos sentirmos traidores ou tiranos? Heloisa Seixas arrasta-nos consigo na sua própria reflexão pessoal, amparados por uma narrativa emocionalmente generosa e envolvente. Um livro que se pressente honesto e fiel à autora e ao tema.
Para a autora, jornalista e escritora brasileira com mais de vinte títulos publicados no Brasil, “O Lugar Escuro” é o seu primeiro livro de não ficção e o primeiro da autora publicado em Portugal. Um ganho para quem se interesse em desvendar a ténue linha que separa a sanidade da loucura e uma feliz descoberta da autora por terras lusas, depois de ter sido escrito e publicado no Brasil em 2007 – e adaptado para o teatro em 2011 e 2013.
1 Commentário
Esse livro é ótimo! Eu recomendo.