Reza a história – e a nota biográfica – que, na sua adolescência, Mariana Enriquez era “leitora de Stephen King, das irmãs Brontë, de Ray Bradbury ou de escritores de terror avulsos e surripiados entre livros usados – além das histórias de fantasmas contadas pela avó, cheias de religiosidade à mistura com superstições e criaturas assustadoras“. Uma herança e percurso literários que atravessam, de uma ponta à outra, “As coisas que perdemos no fogo” (Quetzal, 2017), o primeiro livro da autora a chegar às livrarias nacionais em tradução.
“O rapaz sujo”, o conto de abertura – e provavelmente o melhor desta colectânea -, é um exemplo maior do ambiente claustrofóbico, negro, horrendo e intenso que povoa a prosa de Mariana. Nele, um rapaz “sujo e fedorento” passeia-se pelo metro e, depois de entregar uma imagem de Santo Expedito, obriga os passageiros a dar-lhes a mão para “um aperto breve e imundo“, seguido normalmente da oferta de um punhado de moedas. Com ele, a narradora irá fazer um auto-retrato escrito a tinta permanente: “Uma mulher da classe média que se julga uma provocadora só por ter vivido no bairro mais perigoso de Buenos Aires. (…) Apercebi-me de quão pouco me importavam as pessoas, de quão naturais me pareciam as suas vidas infelizes“. Um conto sobre o egoísmo, o narcisismo, a incapacidade de estender a mão e, também, um guia alternativo da capital argentina.
Em “A Estalagem” entramos numa aldeia onde “a única diversão consiste em jantar frango assado na estalagem, jogar à roleta e nas slot machines do casino da estalagem, conhecer algum triste europeu na estalagem“, numa história de vingança que se transforma num momento de descoberta sexual; “Os anos intoxicados” tocam o tema dos pactos feitos na inconsciência da juventude, de jovens que queriam “ser leves e pálidas como raparigas mortas“, entre muito ácido, cocaína, todo o tipo de comprimidos e uma marijuana venenosa conhecida por punto rojo; “A casa da aldeia” carrega o espírito de Alan Poe, num conto sobre uma rapariga com apenas um braço onde se descobrem os filmes de terror numa casa que fala; “Pregos prega o Pablito: uma evocação do Petiso” apresenta-nos a um guia turístico que foi do mundo das artes para o do crime, oferecendo aos turistas histórias sobre os mais impiedosos assassinos da cidade de Buenos Aires. Um conto onde se assiste à desintegração de um casamento depois do nascimento do primeiro filho; “A Teia de Aranha” convida a uma reflexão relacional: “Ele era uma seca e eu era uma estúpida“; “Fim de ano” traz-nos “uma dessas raparigas que falam pouco, que não parecem demasiado inteligentes nem demasiado burras e que têm essas caras esquecíveis“, que se vestia mal e com roupas que pareciam querer esconder o corpo. Tudo irá mudar quando, numa aula, “arrancou as unhas da mão esquerda“. Um conto ao estilo de Gillian Flynn sobre o fascínio mórbido pela dor própria e sobretudo alheia: “Era ela que estava a desmoronar-se publicamente e sem pudores, mas nós é que tínhamos vergonha“; “Nada de carne sobre nós” mostra-nos uma caveira sem mandíbulas nem dentes, numa visão poética e assustadora da anorexia: “Eu e a Vera vamos ser belas e leves, nocturnas e terrestres; belas as crostas de terra sobre os ossos. Esqueletos ocos e bailarinos. Nada de carne sobre nós“; em “O pátio do vizinho” ouvem-se pancadas na porta e a voz sofrida de um rapaz acorrentado; “Sob a água negra” é uma metáfora, com muito terror à mistura, à poluição e à negligência ambientais; “Verde encarnado alaranjado” presenteia-nos com um falso desmame de anti-depressivos numa espécie de sala de pânico, e o levantar do véu de um pesadelo chamado deep web; “As coisas que perdemos no fogo”, conto título que encerra esta antologia, é um retrato em carne viva sobre a violência doméstica e de género, feito entre mulheres queimadas e fogueiras que não se apagam e que deixa no ar uma pergunta que se lê como um grito: “Quando chegaria o mundo ideal de homens e de mostras?“.
São contos sem espaço para finais felizes, atravessados pela presença de fantasmas, pelo despontar da homossexualidade, dotados de uma consciência de classe mas sem moral, oferecendo uma banda-sonora para a adolescência – sempre com o terror na mira e a infiltrar-se na corrente sanguínea. Um hino ao grotesco, ao macabro e à loucura que se passeia de salto alto.
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